Quaresma de 2015: crianças no olho do furacão!
Por Débora Figueiredo* – Graduada em Filosofia e mestranda em Psicologia
A Páscoa é a data comemorativa mais importante do cristianismo e traz consigo valores como a esperança, a renovação, o respeito, a justiça e o amor. E esses valores são o que eu menos tenho visto nesse período que antecede a Páscoa e que conhecemos pelo nome de Quaresma. Ok, mas nem todos somos obrigados a seguir o cristianismo, alguém pode dizer. E eu concordo. O que me incomoda, porém, é essa velha apropriação dos costumes populares feita pela indústria, minando e desrespeitando significados milenares com o único objetivo de gerar mais lucros para corporações já bilionárias. Essa apropriação não é novidade. Em meados dos anos 50 do século passado, Theodor Adorno já observava e criticava esse modo de agir da indústria. Acontece que um detalhe a mais me intriga no comportamento dessas grandes corporações: a maneira perversa de se utilizar das crianças para alcançar seus objetivos mesmo que estas já tenham seus direitos resguardados.
Onde fica a esperança quando a gente entra num supermercado e vê túneis enormes de ovos de Páscoa coloridos com brinquedos dentro deles? Até onde eu sei não há a possibilidade de passar no caixa somente o “brinde” ou somente o ovo de chocolate. As crianças olham encantadas para aqueles papéis coloridos com seus desenhos animados preferidos e querem. Não importa se os pais já não puderam dar presente no Natal passado ou se têm que escolher entre dois quilos de carne e um ovo de chocolate com um brinquedo que vai ser esquecido no mesmo dia. Eles querem. Se os pais negam, são culpados. Se cedem, são culpados. E a responsabilidade das empresas, cadê? Cadê a justiça e o respeito às crianças no que se refere ao nítido descumprimento da Resolução 163 do Conanda que busca proteger os pequenos dos apelos publicitários feitos com o intuito de seduzi-los? Não há.
Além do que já esperávamos das empresas, como a desobediência da Resolução e o sexismo nos túneis de ovos de Páscoa, vi outras coisas que me incomodaram. Uma delas foi um vídeo de uma garotinha abrindo vários ovos de Páscoa apenas para mostrar os brindes de cada um deles. Não tenho muita certeza de foi a própria garota que, sozinha, gravou o vídeo e publicou no YouTube. Se ela não fez isso sozinha, provavelmente algum adulto estava por ali consentindo e ajudando. Se eu fechasse os olhos, acharia que estava passando algum comercial de ovos de Páscoa na TV. Igualzinho, sem tirar nem por. Frases como “Olhem só que lindo esse brinde do ovo da personagem X!”, “Olhem que fofinho esse outro da personagem Y!”. Lembrei imediatamente daquelas vlogueiras de moda e maquiagem que fazem merchandising em vídeos em troca de brindes das empresas. Qual a diferença, para uma criança, entre assistir a um vídeo desses e um comercial na TV? Lugar de criança é na rua brincando, se sujando, imaginando, criando, lendo, sonhando, compartilhando saberes e vivências. Não é fazendo vídeos para mostrar o que tem ou deixam de ter, não é mediando suas relações através de telinhas, não é servindo de garota propaganda mirim (paga ou não) para uma empresa multimilionária.
Confesso que sonhei com um 2015 diferente para as crianças. Cheguei a pensar que o Enem de 2014 sensibilizaria mais as pessoas para as questões relacionadas a infância e consumo. Em março de 2015, deveríamos estar felizes e comemorando um ano da Resolução nº 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Mas como comemorar? Estamos aflitos, estamos preocupados. Sobe um sentimento de impotência toda vez que entramos num supermercado ou numa loja de departamentos. Toda vez que vemos na TV anúncios dos ovos de Páscoa infantis e dos brinquedos que vêm com eles. Mas estamos lutando. Enquanto uma página incentiva o consumo de ovos caseiros, outra nos lembra que devemos ficar de orelha em pé com as empresas, outra ajuda a divulgar as campanhas e assim seguimos. Lembra da esperança? Ela ainda está aqui.
Foto: arquivo Rebrinc
* Saiba mais sobre a colunista Débora Figueiredo:
Possuo um nome que faz referência a um bichinho e uma super árvore: Débora, que significa abelha, em hebraico; e Figueiredo, que faz referência às figueiras. Amo a natureza, embora viva numa metrópole lotada de obras, carros e prédios: Fortaleza, tão linda quanto frágil. Sou graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará e atualmente faço mestrado em Psicologia com o intuito de entender um pouco sobre as consequências que podem surgir a partir do contato dos pequenos com as novas tecnologias. Antes de ingressar no mestrado, fui professora de Filosofia por três anos em uma escola pública militar e foi essa experiência que fez com que eu despertasse interesse por temas como infância, consumo e novas tecnologias. Sou fruto de uma infância sem hambúrgueres, brindes, cinema e brinquedos em excesso, mas com muita rua, esconde-esconde, pega-pega e amarelinha. Eu também faço parte da Rebrinc e espero poder continuar contribuindo e aprendendo cada vez mais com a Rede.
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Texto feito especialmente para o site da Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc. Caso queira reproduzi-lo, pedimos que mencione a fonte e o autor, com link para o site. Ajude-nos a valorizar os autores e a divulgar o nosso trabalho pela infância.
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