Outras Páscoas são possíveis
Por Tamara Amoroso Gonçalves* – Advogada graduada pela PUC/SP e mestra em Direitos Humanos pela USP
Desde 2008, quando comecei a trabalhar mais ativamente com a discussão do consumismo na infância, abrangendo necessariamente o direcionamento da publicidade a crianças, em especial de produtos alimentícios, a questão dos ovos de Páscoa sempre me chamou a atenção. Foram diversas as denúncias ao Ministério Público de vários estados, relatando abusividades em peças publicitárias e ações promocionais de Páscoa. Nesse contexto, todas as vezes que debati com o setor regulado “a questão dos ovos de Páscoa”, alguns argumentos sempre vinham à tona:
A Páscoa é um período muito específico, a venda de ovos de chocolate é sazonal e eventuais excessos são normais nesse período;
- O direcionamento de publicidade para crianças nessa época seria algo quase que “natural” ou óbvio, na medida em que o principal público-alvo de ovos de chocolate são as crianças;
- O licenciamento em ovos de chocolate é algo que faz parte do mercado e é importante para ajudar as crianças a escolherem seus ovos preferidos;
- Não há problemas em se criar coleções de brinquedos, acompanhando os ovos de Páscoa. Isso não incentivaria o seu consumo nem traria problemas alimentares, considerando que a comercialização de ovos ocorre em um período determinado e limitado no ano.
De fato, não há mesmo como discordar que ovos de Páscoa são produtos sazonais e que as crianças são o principal público. A minha infância foi recheada de ovos de Páscoa. Havia anos em que eu ganhava tantos, que acabava levando-os para a escola para dividir com meus amigos durante a hora do recreio. Embora tenha comido muitos ovos, não sou obesa, não tenho compulsão por chocolate, mas simplesmente adoro ovos de Páscoa. Também não me lembro de ter, na minha infância, ovos com “marca e gênero”. Não havia muita diferenciação entre “ovos de meninos” e “ovos de meninas”. Eram simplesmente ovos. Um ovo era bom quando a gente chacoalhava e adivinhava os variados sabores dos bombons que haviam dentro. Tinha quem gostava dos crocantes, dos ao leite ou com outros recheios.
No Brasil, a minha sensação é que a cada ano que passa, os ovos começam a ser anunciados e vendidos cada vez mais cedo. Também são cada vez mais segmentados, eles têm sexo. O mercado é dividido segundo classe social e gênero. A maioria dos ovos apresentam coleções de brinquedos e, no curto período entre carnaval e Páscoa, a criança é incentivada a colecionar sem parar. Muitos me perguntam: “mas você não acha bom que as crianças brinquem com os brinquedos ao invés de se entupirem de chocolate?”. Na verdade não. Porque, ao final, as brincadeiras inserem-se em um rol tão limitado de atividades, estritamente definidas segundo idade e gênero, que não sei em que medida podem ser contribuir para o desenvolvimento infantil saudável e feliz. Para as meninas temos as eternas princesas da Disney, as bonecas do tipo Bratz, Monster High, Barbie, Minie e outras. Para meninos homem aranha, batman e outros super-heróis.
Parece que na nossa cultura mercantilizada dos dias de hoje, meninos e meninas estão aprisionados nestes padrões. É o que devem desejar, é como devem brincar e se divertir. Acho que não é justo que o modo de viver a Páscoa difundido pelo mercado contribua para homogeneizar e estratificar a infância e os brincares. Não há uma única maneira de viver a Páscoa, há mais do que acumular e colecionar brinquedos forjados a partir de estereótipos de gênero nessa comemoração.
A Páscoa como ela é hoje, no Brasil, não é um acontecimento inexorável. Quem é um pouco mais velho viveu outras experiências. Em outros países a realidade se mostra bem diferente, com uma infância que não é inundada por publicidade e licenciamentos – e pasmem, a vida continua, o mercado é ativo e a economia forte.
Esta foi a segunda vez que vivi a Páscoa em outro país. Montreal pertence à região do Quebec, no Canadá, que conta com estrita regulação da publicidade infantil. Ano passado, quando desembarquei em Montreal, logo depois do Carnaval, demorei a perceber que a Páscoa se aproximava. Discretas decorações começaram a povoar praticamente todas as vitrines, com alusões a coelhos e galinhas, mesmo em lojas de roupas e móveis. Mas tudo muito sutil, nada ostensivo. Nada de túneis de ovos. Nada de ovos gigantes. Sobretudo, nada de ovos com personagens licenciados. Ao contrário, pequenos coelhos e cestinhas com ovinhos, produzidos nas chocolaterias e espalhados pelas lojas. Os ovos não tem, portanto, uma marca para necessariamente ostentar. Não há ovos de meninos e de meninas. Os preços são razoáveis, ou seja, custam algo em torno do que um chocolate, mais ou menos daquele mesmo peso, custaria – bem diferente do que ocorre no Brasil, em que a cada ano os valores cobrados pelos ovos parecem mais altos e abusivos. As publicidades, em geral, fazem alguma referência a coelhos, mas são imagens de coelhos de verdade e não animações. No fim, não dialogam diretamente com as crianças. Ao mesmo tempo, acho difícil discordar que o Canadá conta com uma economia forte e com um mercado aquecido.
Será que as crianças brasileiras são mais felizes com os túneis de chocolate, as disputas para formarem as coleções de brinquedos e os ovos enormes? Tenho meus questionamentos. Afinal, o que comemoramos nesse período? A Páscoa não é um momento celebrado apenas no catolicismo. Outras religiões contam com algum tipo de celebração. De alguma forma, as referências são fortes a momentos de transição e renovação. Os ovos mesmo seriam um símbolo disso.
Pensando assim, seria possível vivermos a Páscoa com mais liberdade? Com liberdade para as crianças comerem muito chocolate, sem dúvida, mas também para brincarem e curtirem o momento de forma mais independente das estritas regras impostas pelo mercado? Acho que sim. Já foi possível um dia, é possível em outros países.
* Saiba mais sobre a colunista Tamara Amoroso Gonçalves:
Olá, meu nome é Tamara. Também estou na Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc. Moro atualmente em Montreal, no Canadá. Sou advogada e mestra em Direitos Humanos. Desde o início da faculdade de direito me envolvi com temáticas relacionadas a direitos humanos e me apaixonei pelo direito da criança e do adolescente. Em meu primeiro estágio contribuí para a defesa técnica de adolescentes em conflito com a lei e tive contato com debates envolvendo questões de gênero. Nesse processo, descobri a importância de se repensar estereótipos e marcações de gênero desde a primeira infância. Em meu mestrado, focado em casos de violações de direitos das mulheres apresentadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ficou evidente a conexão entre ambos os temas: muitos dos casos de violações de direitos das mulheres contavam na verdade histórias de violências contra meninas. A partir de minha experiência no Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, compreendi melhor a necessidade de discutirmos na sociedade brasileira as relações entre consumo, infância e gênero, repensando os padrões consumistas e de gênero que vêm sendo impostos a todos e que limitam o desenvolvimento de uma sociedade mais igualitária e feliz.
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