Ovos de Páscoa com “brindes”: incentivo ao consumismo e desrespeito à legislação
Com a decisão do Superior Tribunal de Justiça do último dia 10 de março proibindo a publicidade infantil, as famílias querem saber: os ovos de Páscoa, recheados com brinquedos, vão sair de cena? É venda casada? Muito acham que sim. Tem apelo infantil? Não tem como negar. Então, como será a Páscoa em 2016? Veja matéria da Rebrinc de 2015 e que levanta a discussão da abusividade dos ovos com brinquedos.
Leia aqui matéria sobre a decisão do STJ.
As lojas estão cheias deles e as crianças na expectativa mas você tem, pelo menos, dois motivos para repensar a compra de ovos de Páscoa. O primeiro deles é o apelo infantil que busca persuadir a criança para o consumo, o que é ilegal de acordo com a Resolução 163 do Conanda. O segundo motivo é o entendimento de que a prática pode ser considerada venda casada, o que é proibido pelo Código de Defesa do Consumidor. Outras razões também podem ser avaliadas para que você não ceda à pressão na hora das compras, como os preços dos produtos, a questão da sustentabilidade, o descarte das embalagens, o excesso de açúcar e gordura e, principalmente, a redução da data ao mero comércio de ovos de chocolate.
Dentro dos ovos de chocolate estão bonecas, bonecos, bichos de pelúcia, coroas, carrinhos, copos e diversos outros tipos de objetos. Pequenas peças que despertam o interesse das crianças por algum tempo mas que depois estarão esquecidas no fundo do armário. A reflexão sobre o acúmulo de brinquedos e peças de pouca utilidade deve acompanhar pais e mães sendo mais um motivo para rejeitar os ovos com apelo infantil, alertam especialistas e ativistas que participam da Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc.
Campanha do Milc
Ovos de chocolate com apelo infantil contrariam a Resolução 163 em vigor desde 4 de abril de 2014. As pessoas que não conhecem a resolução e toda a discussão que existe acerca da abusividade das práticas mercadológicas direcionadas à criança se surpreendem ao saber da proibição e perguntam: se é proibido vender por que as lojas estão cheias de túneis de ovos desse tipo? Para Mariana Sá, do Movimento Infância Livre de Consumismo, Milc, eles ainda são comercializados porque não existe denúncia. “Mesmo com a Resolução 163, os cidadãos não costumam procurar o Estado para impedir que este tipo de produto esteja na prateleira. E não procuram, simplesmente, porque falta informação de como e onde denunciar”, comenta.
Para incentivar as famílias a questionarem e boicotarem a venda de ovos de chocolate com personagens e recheados de brinquedos, o Movimento Infância Livre de Consumismo lançou em 2015 uma campanha que informa sobre a prática abusiva e detalha as formas de se denunciar nos órgãos de proteção da infância e do consumidor. As pessoas podem encaminhar suas denúncias pelo site do Projeto Criança e Consumo, pelo novo portal do Ministério da Justiça e nos Procons de sua cidade. Saiba mais aqui.
Mariana Sá se diz decepcionada com a conduta do Estado em relação aos ovos com “brindes”. “O Estado tem como dever garantir o cumprimento da lei e se a lei existe é lamentável que dependa de denúncias da população para agir.” Destaca que ela e muitos participantes do Movimento Infância Livre de Consumismo questionam a permanência de ovos licenciados com personagens de apelo infantil, assim como de outros produtos alimentícios expostos nos pontos de venda e com propagandas na televisão, impressos e mídias externas. “Já deveriam ter feito acordo com os fabricantes de produtos alimentícios, pelo menos a (má) alimentação, que gera um impacto no sistema de saúde, já deveria estar livre de publicidade para criança”. A representante do Milc afirma que este caso da Páscoa só deixa claro que a população está totalmente desprotegida e à mercê das corporações. Mariana afirma que as famílias que têm acesso à informação já estão fazendo a sua parte, boicotando e denunciando casos de publicidade abusiva e venda casada e que todos esperam que os governos e a Justiça façam a sua parte.
O que é a Resolução 163?
Para entender a Resolução do Conanda, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, é preciso saber que ela não é uma norma que está solta no mundo, mas que se relaciona com outras, segundo Ekaterine Karageorgiadis, advogada do Instituto Alana. Ela esclarece que “é preciso contextualizá-la ao lado do artigo 227 da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA, e do Código de Defesa do Consumidor, CDC, porque a criança precisa de proteção especial, prioritária e absoluta em todos os seus direitos”. Sendo assim, a advogada explica que a Resolução Conanda não trata de algo novo. Desde 1990, está em vigor o Código de Defesa do Consumidor e no artigo 37 está a proibição da publicidade abusiva, que é aquela que aproveita da falta de experiência e julgamento da criança.
Ekaterine lembra que se o consumidor é o elo vulnerável da cadeia de consumo, a criança é ainda mais vulnerável e por isso precisa de uma proteção especial. “Nesse cenário, a Resolução 163 veio para esclarecer quando que esse aproveitamento ocorre. Ela explica que a publicidade abusiva é aquela que, para convencer a criança a adquirir determinado produto ou serviço, faz uso de personagens, linguagem infantil, ambiente infantil, etc. De acordo com Ekaterine, é no Código de Defesa do Consumidor que estão as penalidades cabíveis para quem desrespeita a resolução, como multa, retirada do produto de circulação, contrapropaganda. “A resolução não estabelece sanções, porque elas estão no CDC. Mas tudo vai depender da análise do aplicador da lei, no caso concreto. Se ele entender que há ou não abuso, se há ou não intenção de persuadir a criança”, comenta.
A advogada defende a mobilização dos cidadãos em denúncias como incentiva a campanha do Movimento Infância Livre de Consumismo, Milc. “A sensibilização da sociedade é muito importante exatamente para deixar mais claro para Procons, promotores de justiça, juízes, defensores públicos o que é publicidade para crianças, quando ocorre, qual o objetivo e as suas consequências. A pressão deve existir para que a lei seja aplicada segundo seu objetivo de proteção da criança, e da sociedade como um todo, e não exclusivamente de interesses comerciais”, esclarece Ekaterine Karageorgiadis.
E não são apenas os ovos com personagens e “brindes” que desrespeitam a resolução em vigor e sim todas as formas de publicidade e comunicação mercadológica que usam a criança como alvo. Isso quer dizer que alimentos que utilizam elementos infantis em suas embalagens e nos comerciais também contrariam a legislação. Para as entidades e os movimentos que refletem sobre a relação infância e consumo, as empresas devem fazer publicidade com argumentos que convençam os adultos, que são os responsáveis pelas crianças e os que têm condições de entender a mensagem publicitária e seus interesses. Saiba aqui como identificar a publicidade dirigida à criança.
Brinde ou venda casada?
O que normalmente chamamos de brinde pode na verdade não ser. Assim como alguns lanches de restaurantes fast food com apelo infantil, já alvo de questionamentos pela Justiça e tentativas de proibição de sua comercialização, os ovos com “brindes” seduzem por causa do brinquedo e não do chocolate em si. E para ser brinde, o brinquedo não poderia ser cobrado. Mas ovos destinados ao público infantil são muito mais caros que a mesma quantidade de chocolate em barra ou ovos recheados com bombons, mesmo se levarmos em conta ser um produto sazonal e todo o processo de produção, de embalagem e de transporte.
A advogada Tamara Amoroso Gonçalves explica que o artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor proíbe a venda casada. A prática acontece quando existe a obrigatoriedade de se adquirir um produto para obter o outro, como detalha o Manual de Direito do Consumidor, da Secretaria Nacional do Consumidor. “Esta prática se verifica sempre que o verdadeiro interesse do consumidor recai sobre o objeto que supostamente seria ‘acessório’ ou ‘brinde’, ou seja, o desejo de compra é motivado justamente pela vontade de adquirir este bem teoricamente secundário. Ao mesmo tempo, a única forma de obtê-lo é adquirindo o produto principal”, esclarece.
Tamara explica que nem toda oferta de brinde representa venda casada. Entretanto, um brinde é algo de pequeno valor que é adicionado ao bem principal. “É um atrativo, um chamariz mas que não pode se sobrepor ao produto que está sendo vendido. Seu valor deve ser insignificante em relação ao valor do bem principal”. Para ela, isso não acontece no caso dos ovos com brinquedos. “A verdadeira razão da compra dos ovos ou do pedido aos pais para que comprem ovos com brinquedos está justamente no desejo de ter o que é ofertado dentro dos ovos. Impossível obter os brinquedos sem ter os ovos e, paralelamente, estamos falando de uma quantidade cada vez maior destes produtos que são disponibilizados no mercado. Também não se pode ignorar que muitas marcas incentivam as crianças a colecionarem os ‘brindes’ que estão nos ovos”, lembra.
Para a advogada do Idec, Lívia Cattaruzzi, a venda de ovos de Páscoa que utilizam embalagens coloridas, “brindes” e personagens infantis com a intenção de persuadir a criança para o consumo configura prática extremamente apelativa e abusiva, pois se aproveita da deficiência de julgamento desse público. “É por isso que, para o Idec, as regras contidas na Constituição Federal, no Código de Defesa do Consumidor, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Resolução 163 do Conanda são suficientes para coibir qualquer tipo de abuso e proibir a venda de produtos com a distribuição de ‘brindes’ com personagens infantis”, frisa Lívia. Além disso, a advogada reforça que a comercialização de ovos de Páscoa com “brindes” representa venda casada, prática vedada pelo Código de Defesa do Consumidor em seu artigo 39, já que o presente não pode ser comercializado separadamente. E acrescenta que “o Idec acredita que a publicidade é, claramente, um fator importante para o aumento da obesidade entre as crianças e que a prática de utilizar brindes com personagens pode induzir o público infantil a consumir porções de chocolate além do recomendado, influenciando no aumento dos índices de sobrepeso e obesidade”.
Já o Procon-SP informou que “a comercialização de produtos com brindes não configura venda casada, sendo necessária a análise individual. Quanto à Resolução 163, o Procon-SP assinou no ano passado moção de apoio a mesma e, havendo denúncias, a Fundação irá analisar e dar o devido encaminhamento com base no Código de Defesa do Consumidor. Sendo o caso uma questão coletiva e federal é recomendado também o encaminhamento de denúncias ao Conanda e à Senacom.”
Para buscarmos uma Páscoa livre de consumismo, além do boicote, da reclamação para a empresa que fabrica e anuncia e das denúncias para os órgãos de proteção do consumidor e da infância, as famílias podem fazer seus próprios ovos de chocolate ou comprar de quem faz. Outras alternativas para comemorar a data e evitar o consumismo e o desperdício de recursos também podem ser criadas resgatando o simbolismo da Páscoa.
Conheça a campanha do Movimento Infância Livre de Consumismo de 2016 #PáscoaCriativa
Relembre a campanha #PáscoaLivre do Milc de 2015 e saiba como denunciar.
Imagem: Montagem
Reportagem: Desirée Ruas – Jornalista/Rebrinc