Meu filho brinca de casinha, sim!
Por Ana Dietmüller* – Graduada em Direito, Editora Geral no Blog colaborativo Brasileiras pelo Mundo e integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo
Local: sala de aula do Jardim de Infância do meu filho
Ano: 2016
País: Áustria
Cena 1: chego para buscar meu pequeno e me deparo com uma cena – para mim – extremamente doce: meu filho, que não me viu à porta da sala, empurrava um carrinho de bonecas com uma “filhinha” dentro. Minha “neta” certamente. Ele a levava para passear, pois fez todo o contorno da sala e, quando a pedagoga o avisou sobre a minha presença, ele guardou o carrinho no Canto das Bonecas (local apropriado dentro da sala de aula para esse tipo de brinquedos) e veio ao meu encontro.
Cena 2: mais uma vez, estou eu parada à porta da sala de aula, aguardando que meu pinguinho guarde os brinquedos para irmos embora. Enquanto ele termina a tarefa, olho para o lado e vejo o desenrolar da seguinte cena: um coleguinha e uma coleguinha brincavam de família, ou seja, ela dava comidinha para a bonequinha enquanto o “papai” perguntava o que deveria comprar para casa (penso eu, pelo modo como as coisas se desenrolaram). Depois de ambos haverem conversado, o coleguinha-papai enfiou uma bolsa – sim, uma bolsa feminina, que faz parte do acervo de brinquedos da casinha – no braço, afastou-se um pouco, sacou uma carteirinha e conversou com um ser imaginário, que eu acredito tenha sido um vendedor. Recebeu as mercadorias, pagou-por elas e voltou para casa. Lá chegando, conversou com a coleguinha-mamãe, tirou os produtos imaginários de dentro da bolsa, e os colocou sobre a mesa. A coleguinha-mamãe agradeceu e seguiu alimentando a boneca-filhinha.
Confesso que após ter vivenciado essas duas experiências, em específico, fiquei bastante feliz, sobretudo acerca do lugar onde meu filho está recebendo sua primeira formação escolar: não se percebe resquício nenhum de discriminação ou segregação do tipo: “isso é para menina. Isso é para menino”. Essa linha pedagógica me agrada e muitíssimo, pois as crianças estão brincando sob os olhos atentos das professoras. Se algo de errado houvesse nessa dinâmica, certamente viria a correção por parte das profissionais. E, se não veio, é sinal de que as coisas vão bem!
O que percebo é que as crianças – os meninos, aqui, em especial – reproduzem os comportamentos que observam nas suas famílias e nos ambientes onde vivem. Meu filho empurra o carrinho de nenê, porque era o pai dele quem fazia essa função, quando ele ainda cabia em um; o coleguinha-papai, provavelmente, vivencia no seu cotidiano o fato de seu pai conversar com sua mãe acerca do que trazer para casa, enfiar uma sacola no braço e comprar o que é necessário. Simples assim!
Os meninos não estão sendo ensinados ou doutrinados ou influenciados a “virarem” meninas – falo isso, única e exclusivamente, porque já me deparei com comentários brasileiros nessa linha. Os meninos estão, na verdade – e muito provavelmente, porque é o que acontece aqui em casa – replicando o comportamento de seus pais, pois o papel do namorado/marido/companheiro, aqui na sociedade onde vivo, é exatamente esse: dividir as tarefas da casa e da vida com a namorada/esposa/companheira. O namorado/marido/companheiro, mesmo que trabalhe fora e, embora a mãe seja apenas dona de casa, “pega junto” de verdade. Sem que namoradas/esposas/companheiras precisem pedir, eles cozinham, limpam casa, dão banho e trocam fraldas, levam as crianças para brincar quando a mamãe precisa de um descanso e, de madrugada, quando os bebês só querem atenção – e não mamá – eles levantam e acalmam os pequenos, sem aquele conhecido bordão “amor, eu trabalho fora o dia inteiro e estou cansado”. Obviamente que deve haver exceções nesse tipo de comportamento, mas a normalidade do homem austríaco moderno é essa: dividir, cooperar.
E essa, portanto – a meu ver – é a razão de os meninos brincarem de casinha sem que ocorra espanto ou desconfiança por parte de ninguém: eles imitam a vida! Só isso!
Em casa existe o estímulo para que isso assim permaneça e na escola também, pois meu pequeno já ajuda com pequenas tarefas – adequadas à sua idade de três anos, evidentemente – diárias como guardar suas próprias roupinhas, trazer alimentos dos armários ou da geladeira para o preparo, arrumar a mesa para as refeições, auxiliar a mim ou ao pai enquanto cozinhamos (ele coloca o sal nos alimentos, os temperos, enfim). Essa rotina não é rígida, ele tem apenas três anos, mas frequentemente eu peço ajuda, ou ele próprio se oferece para ajudar, porque na escola ele vê os coleguinhas mais velhos trazendo a louça para a preparação do lanche, ou recolhendo os lixinhos e arrumando as mesinhas para o próximo dia.
E nesse último ponto vale também abrir-se um parênteses: os coleguinhas que estão no último ano de Jardim de Infância integram o Clubinho Escolar e recebem “tarefinhas” para irem se acostumando com o novo mundo das responsabilidades que irão encarar na Primeira Série. Pois bem, toda sexta-feira é feita uma escala com os nomezinhos dos responsáveis por essas “atribuiçõezinhas” durante toda a semana. E eles seguem à risca. Claro que tudo isso é combinado com os pais na primeira reunião quando do início do ano letivo. E, em dois anos que já participo, nunca vi ninguém dar o contra!
Então, cedo quando chegamos, já avistamos os maiorzinhos carregando os copinhos e pratinhos para a posterior arrumação da mesa do lanche, sendo que eu mesma passei por uma experiência no que tange ao recolhimento do lixo por uma amiguinha: apenas nas sextas-feiras, as crianças recebem uma balinha (há uma política de boa alimentação e são proibidos doces, frituras ou refrigerantes) na saída, como sinal de que o fim de semana já vem chegando. Ok. Meu pequeno ganhou a sua e, enquanto ele calçava os sapatos, eu desembalei a bala e guardei o papel no bolso do casaco. Casualmente, a coleguinha responsável pela limpeza estava na nossa frente e, de pronto, se manifestou: “a senhora pode me dar o papelzinho, eu jogo no lixo”. Obedeci e agradeci. Uma criança de 5 anos de idade, que já tem total noção de responsabilidade, pois poderia simplesmente não dizer nem fazer nada. Ao contrário, reconheceu a tarefa como dela e por ela se responsabilizou! E isso – para um pai ou uma mãe, que têm filhos em formação escolar – não tem preço!
Atrevo-me a dizer até que, com todos esses estímulos familiares e sociais, estranho seria os meninos NÃO brincarem de casinha, não reproduzirem o que vivem. E, mais esquisito ainda, seria os pais questionarem essas pedagogias.
Se meu pinguinho continuará prestativo e auxiliando? Não se sabe, pois é uma criança pequena e há muito pela frente ainda, porém, uma certeza eu – como mãe – tenho: a vida dele será encarada de forma mais tranquila se ele, desde já, tomar contato com essas realidades e as perceber como normais e cotidianas.
Grande abraço e até a próxima!
Publicado em 31 de outubro de 2016
Saiba mais sobre a colunista Ana Dietmüller
Nascida em Porto Alegre, em 1974.
Graduada em Direito pela PUC, também de Porto Alegre/RS, em 1996; pós-graduada em Direito Internacional pela UFRGS, em 2008.
15 anos de experiência profissional, militando na advocacia corporativa. Solução, diplomática, de conflitos tanto judiciais quanto de relacionamentos interpessoais, é um diferencial.
Infância feliz, cheia de brincadeiras ao ar livre, na pracinha, com os amiguinhos do condomínio. Muita amarelinha, 5 Marias, bola e bicicleta; aniversários dentro do apartamento mesmo e docinhos feitos pela mãe e avó.
Adolescência inquieta, questionadora e de muito estudo, mas também, de muito cinema, passeio com as amigas, violão e muitas amizades.
Juventude de muito estudo e trabalho, mas, também, de muitas relações humanas, viagens e trocas de experiências.
Moradora da Áustria há 4 anos, casada com um austríaco e mãe de um austro-brasileirinho. Vida simples, mas em um mundo diferente, rodeado de educação, cultura, civilidade e muito investimento no ser humano, sobretudo na diversidade cultural.
Apaixonada por literatura e, por consequência, amante das letras, aventuro-me a escrever minhas próprias linhas.
Meus interesses? História, literatura, filosofia, música, gastronomia, viagens, línguas, mas, principalmente, o ser humano!
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