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Sequestro por amor vale?

Sequestro por amor vale?

Por Tamara Amoroso Gonçalves* – Advogada graduada pela PUC/SP e mestra em Direitos Humanos pela USP

No mesmo mês em que a presidenta Dilma sancionou a lei do feminicídio – que aumenta a pena para o assassinato de mulheres – a série de telenovela adolescente Malhação dissemina em plena rede nacional a ideia de que vale tudo por “amor”. Vale amarrar, ensacar, amordaçar, sequestrar, tudo em nome da manutenção de uma relação amorosa permeada por violência. Ante aos protestos da jovem, que rejeita o “amor” de Pedro, ela passa a ser carinhosamente chamada de “esquentadinha”.

O sequestro é orquestrado por Pedro e seus quatro amigos, com a supervisão de um adulto (um mestre budista, supostamente) e tem por objetivo convencer Karina (“a esquentadinha”) a ficar com Pedro, seu amor verdadeiro. O jovem é chamado de “romântico incurável” pelos seus colegas, pois o seu amor seria tão grande que o levaria mesmo a se submeter aos maus tratos e à agressividade de sua amada. Embora nenhuma forma de violência seja justificável, é interessante notar que desde o começo a relação parece ter sido marcada por tapas e pontapés. Desconheço a história do casal na série, mas a partir do que é revelado no episódio exibido em 9 de março (o do sequestro), a relação se inicia com um beijo roubado da moça. A insistência do rapaz a enerva e ela parte para a agressão em diversas oportunidades. Estaria ela se defendendo? De beijos e contatos íntimos indesejados? Ela reage de forma agressiva inclusive quando ele a procura para realizar o “grande plano” de amarrá-la a la Capitão Nascimento – referência ao personagem do cinema brasileiro que promove a tortura como forma de combate à violência e integrante necessária do programa de formação dos policiais de elite (BOPE).

Em que momento a produção do programa achou razoável disseminar a ideia de que sequestrar por amor pode e é romântico? Além de crime previsto no Código Penal (cárcere privado) é também violência contra a mulher nos termos da Lei Maria da Penha. Como pode um amor se nutrir de violência? Como isso pode ser romântico? Como esse conteúdo pode ser veiculado sem nenhuma crítica em um país em que a violência contra as mulheres assume níveis epidêmicos? Apenas para lembrar, em 2008, um estudante também sequestrou sua namorada. O caso foi excessivamente televisionado – chegando mesmo ao absurdo de um programa de TV entrevistar o sequestrador, durante o cárcere privado – e terminou em morte. Onde fica a responsabilidade das emissoras de televisão em preservar e promover conteúdos educativos?

A violência contra as mulheres é um fenômeno complexo. Manifesta-se em todas as culturas, em todas as classes sociais. É uma das mais perniciosas e insidiosas formas de violência e pode se manifestar de diversas formas e intensidades. É uma ferida aberta das relações assimétricas de poder entre homens e mulheres, pode ser psicológica, física, patrimonial e muitas outras. Documentos internacionais tratam do assunto, como a Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Brasil. Além da lei recentemente aprovada pela presidenta, o Brasil conta com a Lei 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, que pune mais severamente a violência doméstica e familiar. Por interpretação dos tribunais, a Lei se aplica não apenas à união estável e a casamentos, mas a qualquer relação íntima de afeto, o que inclui namoro. Diversas são as campanhas públicas que disseminam a ideia de que violência não combina com amor e que vizinhos e amigos devem ajudar a denunciar esse tipo de violência. Não é o que acontece no episódio de Malhação em que os amigos do rapaz ajudam no sequestro e ainda temem pela vida dele; em uma completa inversão de valores, pois quem na verdade corre risco de vida é ela.

Embora a resposta penal nem sempre seja a solução para todos os problemas de desigualdade de poder nas relações, em alguns casos destacar a questão e dar-lhe contornos penais contribuem para dar visibilidade ao tema e, assim, ajudar a enfrentá-lo. É o que vem acontecendo com o tema da violência doméstica. Bandeira antiga do movimento feminista, tem hoje tratamento muito diferente de 50 anos atrás, em que era comum ouvir-se falar em “assassinatos em defesa da honra”, excusa hoje não mais admissível. Assim, causa surpresa que a novela venha disseminar justamente o contrário de todas as campanhas públicas e de movimentos feministas sobre o tema, misturando violência e amor de forma indissociável.

Mas nem só de direito penal se alimenta a discussão da violência contra as mulheres. Sendo estruturante da sociedade brasileira, a desigualdade entre homens e mulheres fomenta discursos sociais ainda bastante permissivos da violência social e simbólica. As grandes mídias contribuem para o reforço dos estereótipos de gênero que viabilizam a violência e silenciam as mulheres. Afinal, no caso do romance juvenil, o grande objetivo do plano é fazer a mocinha escutar o rapaz – algo que ela deliberadamente não quer fazer – para ajudá-la a compreender o quanto ele a ama. E para isso, além de colocá-la num saco e amarrá-la, ele ainda coloca uma meia em sua boca, para que ela não possa falar. Nada mais simbólico para traduzir o silenciamento que tenta se impor sobre todas nós, mulheres. Ideia costurada desde a primeira infância, reforçada na adolescência e nas grandes mídias comerciais.

Em que pese a liberdade dos meios de comunicação de veicular a programação que entendem ser mais interessante, não se pode esquecer jamais da responsabilidade pública desses meios, por determinação constitucional, de promover valores sociais e educativos. Nesse contexto, fica a dúvida: em que contribui a emissora para a reversão da violência contra as mulheres na sociedade brasileira? Em que medida se apresenta como obstáculo às políticas públicas de enfrentamento à violência e ao machismo? Mais do que isso, como pode um episódio desse ser aprovado sem que ninguém ao menos questione ou critique? Como já se disse por aí, mais do que homenagens no mês de março, queremos ter direitos respeitados o ano inteiro, para todas as meninas e mulheres.

Imagem: divulgação

Colunista Rebrinc

* Saiba mais sobre a colunista Tamara Amoroso Gonçalves:

Olá, meu nome é Tamara. Também estou na Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc. Moro atualmente em Montreal, no Canadá. Sou advogada e mestra em Direitos Humanos. Desde o início da faculdade de direito me envolvi com temáticas relacionadas a direitos humanos e me apaixonei pelo direito da criança e do adolescente. Em meu primeiro estágio contribuí para a defesa técnica de adolescentes em conflito com a lei e tive contato com debates envolvendo questões de gênero. Nesse processo, descobri a importância de se repensar estereótipos e marcações de gênero desde a primeira infância. Em meu mestrado, focado em casos de violações de direitos das mulheres apresentadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ficou evidente a conexão entre ambos os temas: muitos dos casos de violações de direitos das mulheres contavam na verdade histórias de violências contra meninas. A partir de minha experiência no Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, compreendi melhor a necessidade de discutirmos na sociedade brasileira as relações entre consumo, infância e gênero, repensando os padrões consumistas e de gênero que vêm sendo impostos a todos e que limitam o desenvolvimento de uma sociedade mais igualitária e feliz.

Fale com a autora: contato@rebrinc.com.br

Texto feito especialmente para o site da Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc. Caso queira reproduzi-lo, pedimos que mencione a fonte e o autor, com link para o site. Ajude-nos a valorizar os autores e a divulgar o nosso trabalho pela infância.

 

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