Para refletir: sobre mães, consumo e lembranças
Todo sábado íamos eu e minha mãe fazer as compras semanais. Eu tinha cerca de quatro anos e já era bem espertinha e não costumava ser birrenta.
– Filha, hoje vamos escolher sua lancheira!
Chegando na loja, fiquei encantada, mas me encontrei num dilema: a da Barbie era rosa, mas eu não gostava da Barbie; a da Mônica era vermelha, mas eu não gostava de vermelho. “Uni-duni-tê”, vai você mesmo dona dentuça. Chegando na fila olhei para a lancheira, olhei para a minha mãe e disse:
– Mãe, quero a rosa.
– Mas você não gosta da Barbie, Débora.
– Mas eu quero a rosa.
Minha mãe, ainda com paciência, saiu da fila, e foi comigo pegar a rosa, da Barbie. Voltamos para a fila. Começou a subir uma aflição, uma coisa estranha. Olhei nervosa para a lancheira, olhei para a minha mãe e disse:
– Mãe, quero a da Mônica.
– Como é, Débora? Você já me fez voltar uma vez! Vá lá e pegue a da Mônica.
Voltei toda feliz com a minha lancheira que lembrava minha saudosa mamadeira… da Mônica. Mas algo me incomodava profundamente: era vermelha!
Como eu iria dizer isso para minha mãe, gente? Demorei para decidir de tanto medo, mas a coragem veio:
– Mãe, quero a rosa.
Acabei de me colocar no lugar da minha mãe e mentalizei uma palavra nada bonita.
– Como é, Débora?
– A rosa é mais bonita, mãe! Quero a rosa, por favor! – E os olhos marejados…
Foi aí que ela olhou com aqueles olhos grandes e disse:
– VÁ BUSCAR A LANCHEIRA ROSA E VOLTE AQUI CORRENDO!
Fui! E voltei correndo! Ela continuou:
– Você vai passar UM MÊS sem vir comigo ao supermercado! UM MÊS! ESTÁ ME OUVINDO, DONA DÉBORA?
E eu lá sabia quanto era um mês! Mas fiquei preocupada… com aqueles gritos só podia ser o equivalente a idade da minha vó! Toda semana, quando eu via minha mãe se arrumando no sábado, perguntava:
– Mãe, hoje é um mês?
– Não, filha. Um mês são quatro sábados.
Não adiantou explicar. Todo sábado eu fazia a mesma pergunta, até que no último, tive a ideia brilhante de perguntar para a Vanda, moça que ajeitava a casa e ficava comigo quando minha mãe estava no trabalho, se aquele era o “quatro sábados”. Era. Era sim! Fui para a sala, fiquei observando de longe minha mãe se arrumar e quando ela chegou na sala, comecei a fingir que estava assobiando e olhando pra cima, como quem não quer nada. Só fingindo mesmo, nunca aprendi a fazer esse negócio direito. Minha mãe riu e disse:
– Hoje é o quarto sábado, você sabia?
Claro que sabia! Mas respondi:
– É?
– É. Você sabe porque ficou esse tempo todo sem ir comigo?
– Sei sim, mamãe. Pedi coisas que não podia levar, chorei e reclamei.
Ora, ela tinha me dito isso no primeiro sábado e eu fiz questão de lembrar!
– Pois é. Se você quiser ir comigo, vá se arrumar, mas você já sabe que se fizer de novo, nunca mais vai comigo.
Eita que “nunca” eu já sabia o que era. Nunca era muito. Nunca era pra sempre, mas tipo ao contrário. Era coisa demais! Fui e me comportei direitinho. Cresci sem encher o saco da minha mãe e às vezes isso era até um problema! Ela queria me levar ao shopping para comprar roupas de tempos e tempos, quando as minhas já estavam surradinhas e me dava algo em torno de duzentos reais e eu não conseguia gastar nem dez! Enquanto isso, minhas amigas chegavam sempre me mostrando as roupas da marca x ou y, mas que eu achava tão feias! Salvo um short-saia que eu achava que deveria ser meu e não da minha melhor amiga, mas aí eu usava emprestado e dava tudo certo. Estou aqui para dizer: “Mãe, obrigada!”. Obrigada por ter me ensinado o verdadeiro valor das coisas. Obrigada pela paciência na hora de me explicar o que eu não entendia. Obrigada por todos os “nãos”. Obrigada por resistir a essa indústria suja e injusta que apela das maneiras mais baixas: sim, eu lembro de quando eu imitava a propaganda do Baton Garoto! Obrigada por chorar quando lembra das minhas apresentações na escola e não pelos presentes que te dei. Obrigada por jogar dominó comigo dos dias de chuva! Obrigada por se esconder no meu quarto com medo de trovão. Obrigada por ter lido a historinha da Glorinha* mil vezes. Esse é meu presente este ano! Aproveita e curte a página da Rebrinc! Te amo!
Ps.: Mães, amar é estar presente, e não dar presente (como disse um comercial que eu li no Natal).
*Livro “A curiosidade premiada”, de Fernanda Lopes de Almeida
Foto: arquivo pessoal/Débora Figueiredo
* Saiba mais sobre a colunista Débora Figueiredo:
Possuo um nome que faz referência a um bichinho e uma super árvore: Débora, que significa abelha, em hebraico; e Figueiredo, que faz referência às figueiras. Amo a natureza, embora viva numa metrópole lotada de obras, carros e prédios: Fortaleza, tão linda quanto frágil. Sou graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará e atualmente faço mestrado em Psicologia com o intuito de entender um pouco sobre as consequências que podem surgir a partir do contato dos pequenos com as novas tecnologias. Antes de ingressar no mestrado, fui professora de Filosofia por três anos em uma escola pública militar e foi essa experiência que fez com que eu despertasse interesse por temas como infância, consumo e novas tecnologias. Sou fruto de uma infância sem hambúrgueres, brindes, cinema e brinquedos em excesso, mas com muita rua, esconde-esconde, pega-pega e amarelinha. Eu também faço parte da Rebrinc e espero poder continuar contribuindo e aprendendo cada vez mais com a Rede.
Fale com a autora: contato@rebrinc.com.br
Texto feito especialmente para o site da Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc. Caso queira reproduzi-lo, pedimos que mencione a fonte e o autor, com link para o site. Ajude-nos a valorizar os autores e a divulgar o nosso trabalho pela infância.
Leia também outros textos da colunista Débora Figueiredo: