Pages Menu
Categories Menu
PEC 241 e Proteção Integral: o diálogo é possível?

PEC 241 e Proteção Integral: o diálogo é possível?

 

Por Raquel Gutierrez de Azevedo* – Advogada, graduada em Direito, Pós-Graduanda em Direito Civil e Direito Processual Civil e integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo

A polêmica da antiga PEC 241, conhecida como PEC do teto dos gastos (atual PEC 55 em tramitação no Senado), tem como proposta limitar o aumento real dos gastos do Governo para salvar a economia brasileira da dívida que está muito acima do nosso PIB. Ainda não foi aprovada e já divide opiniões sobre sua provável eficácia ou seu efeito catastrófico nos direitos sociais. E os direitos das crianças e adolescentes, garantidos no âmbito constitucional e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), serão mais ou menos afetados? O Estado mínimo proposto pela PEC 241 consegue dialogar e conviver com a Doutrina da Proteção Integral?

Nossa Constituição Federal de 1988 comprometeu o Estado a agir para a garantia dos Direitos Sociais, direitos humanos de segunda geração, fundamentais para uma vida digna. Elencados no Artigo 6º são os seguintes: a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

A seguridade social foi definida no Artigo 194 como um conjunto integrado de ações com iniciativa dos poderes públicos e sociedade, para assegurar direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, especificando mais adiante esses direitos e como implementá-los. Dos três, a saúde é o único que atende a todos, independentemente de contribuição ou renda, e dá prioridade para atividades preventivas (Artigo 198, II). Também é o único que fixa um gasto mínimo à União, obrigando-a a reservar 15% da receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro. A PEC 241 continua reservando uma quantia mínima para gastos com a saúde, mas ligada à inflação, sem aumento real, já é uma desvantagem comparada ao texto constitucional original.

Para a assistência social, serviço prestado a quem necessitar (independente de contribuição à previdência), a PEC 241 não fixou um gasto mínimo, como fez com a saúde ou educação – mesmo que menor que o atual. Seus principais objetivos são: a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; o amparo às crianças e aos adolescentes carentes; a promoção da integração ao mercado de trabalho; a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. Ou seja, verbas de programas sociais.

Foi também na Constituição Federal de 88, em seu Artigo 277, que se falou pela primeira vez em se garantir com prioridade absolta e em maneira conjunta a proteção dos direitos de crianças a adolescentes de forma integral. Era o início da Doutrina da Proteção Integral, reforçada em 1990 pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).  O ECA tornou obrigação do poder público garantir políticas públicas para o nascimento e o desenvolvimento saudáveis de crianças e adolescentes, assegurando o atendimento a mulheres grávidas, além de acesso integral às linhas voltadas à saúde de crianças e adolescentes por meio do SUS.

A manutenção da saúde de crianças e adolescentes demandas gastos, não há como defender uma saúde pública de qualidade, que atenda a prioridade a crianças a adolescentes, conforme manda a constituição e o ECA, com os gastos congelados, e ainda conseguir cuidar da saúde do resto da população brasileira. Segundo entrevista concedida por Grazielle David, com a aprovação da PEC o SUS terá que se limitar a oferecer apenas atenção básica a todos, ou reduzir a universalidade e só promover a saúde das populações mais pobres.

O ECA também assegura o direito à educação a toda criança e adolescente, e incumbe o Estado de lhe proporcionar igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, sendo ela pública e gratuita, próxima à sua residência. Tanto a escola (materiais, professores, funcionários) quanto os alunos devem ser mantidos pelo Estado de uma forma que garanta seu aprendizado, e isso também demanda dinheiro.

A PEC inviabiliza o cumprimento das metas para melhoria da educação brasileira do Plano Nacional de Educação 2014-2024 (Lei 13.005/14 – Criação de 600 mil matrículas em pré-escola, 500 mil no Ensino Fundamental e 1,7 milhões no Ensino Médio), que demandam expansão da rede, e com isso, aumento de gastos. A PEC já afeta a educação desde a base, inviabilizando a criação de 3,2 milhões de novas vagas em creches para crianças e adolescentes. Durante 20 anos, inúmeras crianças e adolescentes terão seu direito ao estudo prejudicado pela prioridade dada à economia.

Também assegurou ser direito da criança permanecer em sua família de origem, mesmo estando ausentes condições financeiras, devendo o Estado proporcionar meios para auxiliar essa família a ter uma vida digna. A distribuição do Bolsa Família entra nesse direito, bem como o benefício de prestação continuada (BPC), garantido pela Constituição a idosos e pessoas com deficiência que vivem com uma renda menor que um quarto de salário mínimo. Seus beneficiários recebem um salário mínimo, que pode ser também afetado com a aprovação da PEC. Por 20 anos a PEC 241 vai prejudicar de forma direta a vida de famílias pobres com crianças com deficiência.

Ainda, o ECA determina que se organize uma política de atendimento especial para crianças e adolescentes, por meio de entidades que têm como função dar proteção socioeducativa para crianças e adolescentes. Destaca-se o Conselho Tutelar, e os recursos para essas entidades estão previstos dentre os relativos à saúde, à educação e à assistência (ECA, Artigo 90, §2º).

A assistência não tem limite fixado na PEC como a educação e a saúde. Quais os riscos para a assistência se algum governante resolver retirar seus recursos para aumentar os da saúde e da educação? É realmente vantajoso investir em saúde e educação enquanto as medidas assistenciais estão sendo sucateadas?  Nesse cenário, ainda há explícito desrespeito com a prioridade absoluta e a proteção integral.

Por fim, para o melhor atendimento judicial de crianças e adolescentes são necessárias varas especializadas em infância e juventude, e cabe ao Poder Judiciário estabelecer sua proporcionalidade por números de habitantes e dotá-las de infraestrutura (Artigo 145, ECA). Mesmo em cidades sem varas especializadas, é necessária uma equipe interprofissional (psicólogas, assistentes sociais) para assessorar as decisões judiciais, e os recursos destinados para essa equipe devem ser previstos na elaboração da proposta orçamentária (Artigo 150, ECA). A PEC 241 também estabelece um teto de gastos para o Poder Judiciário, o que possibilita intuir menos investimentos em varas especializadas e menos concursos para novos integrantes da equipe interprofissional.

A efetiva proteção integral é um investimento que demanda gastos e não pode ser negligenciada por uma medida que pode salvar a economia nacional, de forma a “mandarem embora os dedos e ficarem os anéis”. Afinal, é o desenvolvimento social que gera a riqueza de um país, não uma economia numericamente equilibrada, principalmente em uma crise que ela provocou. Como explicado pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli em seu livro “A democracia através dos direitos” (2015, p.215): “Os sistemas políticos não são sociedades comerciais com fins de lucro. As finalidades das quais extraem legitimação democrática são a garantia dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa, bem como dos direitos fundamentais estabelecidos nas Constituições. […] Se é verdade que os direitos e garantias sociais custam, também é verdade que custa muito mais o estado de indigência provocado pela sua ausência”.

A PEC 55 (antiga PEC 241) não dialoga com o Estado Democrático de Direito estabelecido pela Constituição Federal e tampouco com a doutrina da Proteção Integral. A infância e a adolescência devem ter seus direitos básicos garantidos, possibilitando o desenvolvimento pessoal. Quando se diz prioridade absoluta, a ordem econômica também fica subordinada ao melhor interesse da criança e do adolescente, e a PEC em questão não o satisfaz de forma alguma.

Foto Flickr Silvano Jr

Foto: Flickr/Silvano Jr

* Saiba mais sobre a colunista Raquel Gutierrez.

Colunista Rebrinc Raquel Gutierrez

Sou advogada e acabei de me formar. Tento acreditar que minha profissão é bem mais do que me cercar por papéis e processos. Me interesso por qualquer tema que envolva Direito de Crianças e Adolescentes, especialmente os que tratam de sociedade em rede e de consumo, adultização precoce e influência da mídia perante as crianças e seus padrões de comportamento – inclusive identidade de gênero. Espero ajudar na desconstrução dessa sociedade louca e individualista, tentando ao máximo dar prioridade absoluta e proteção integral às crianças e adolescentes, como concordamos em fazer ao promulgarmos nossa Constituição Federal.

Fale com a autora: contato@rebrinc.com.br

Texto feito especialmente para o site da Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc. Caso queira reproduzi-lo, pedimos que mencione a fonte e o autor, com link para o site. Ajude-nos a valorizar os autores e a divulgar o nosso trabalho pela infância.