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Infância: cidadania versus consumo

Infância: cidadania versus consumo


Por Lais Fontenelle – Psicóloga, consultora do Instituto Alana e integrante da Rebrinc

Texto publicado originalmente no Outras Palavras.

O 4 de abril de 2014 foi um dia histórico para as crianças brasileiras e todos os que lutam por uma infância livre de apelos do mercado. Nessa data foi publicada no Diário Oficial a resolução 163/14 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes), que define como abusivo e ilegal a publicidade dirigida às crianças com a intenção de persuadi-las para o consumo de qualquer produto ou serviço, conforme o Código de Defesa do Consumidor.

A resolução foi aprovada, de forma unânime, e proíbe que anúncios impressos, comerciais televisivos, spots de rádio, banners e sites, embalagens, promoções, merchandisings, ações em shows e nos pontos de venda sejam focados nas crianças menores de 12 anos. Cria, assim, um novo paradigma para a efetivação dos direitos das crianças.

O texto da resolução versa também sobre a proibição de qualquer publicidade no interior de creches e escolas de educação infantil e fundamental, inclusive nos uniformes escolares e materiais didáticos, fazendo valer o que os especialistas e organizações não governamentais clamam há tempos: que a criança, até mais ou menos 12 anos, é extremamente vulnerável ao discurso persuasivo da publicidade e aos apelos de mercado – pois nessa fase de desenvolvimento físico, cognitivo e emocional ainda não têm completamente formada a capacidade crítica e de abstração de pensamento.

É sempre bom lembrar que escola deve ser um espaço de socialização da criança e de formação para cidadania – e não um local de promoção de produtos. Segundo o autor Neil Postman: “A escola deveria ser capaz de alterar as lentes pelas quais as crianças veem o mundo, e ter em vista a maneira como construir uma vida, e não apenas como ganhar a vida”.

A partir da resolução, não se pode mais negar que a publicidade, quando dirigida ao público menor de 12 anos, viola os direitos das crianças e gera impactos bastante negativos para o desenvolvimento infantil saudável. Ela contribui para o grande e urgente problema do consumismo na infância e suas graves consequências, tais como obesidade infantil, erotização precoce, estresse familiar, violência, consumo precoce de álcool, além de impactos ambientais severos.

Um ótimo exemplo disso são dados alarmantes como os que 33% das crianças brasileiras estão com sobrepeso e 15% obesas, como indica pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE 2008/2009; ou ligados à erotização precoce, que mostram 65% das meninas que se deixam explorar sexualmente usando o dinheiro para comprar bens de consumo1; ou ainda que o acesso rápido ao consumo, independência e prestígio são os principais motivadores de delitos entre os/as internos da Fundação Casa2. Já em relação ao consumo precoce de álcool, sabemos que 62% dos adolescentes brasileiros afirmaram ter sido expostos quase todos os dias, até mais de uma vez por dia, à publicidade de bebidas alcoólicas.3 Não se trata de coincidência, portanto, que a idade na qual se inicia o consumo regular de bebidas alcoólicas no Brasil está entre 12 e 14 anos.

Mas, apesar de todos esses dados nos mostrarem claramente o impacto negativo que a publicidade tem no desenvolvimento físico e emocional saudável de nossas crianças, o que bastaria para se comemorar a publicação das normas do Conanda, a resolução não foi bem recebida por todos – principalmente pelas entidades representativas de anunciantes, agências de publicidade e emissoras de rádio e televisão. Defendendo a autorregulamentação do setor, três dias após a promulgação da resolução estas entidades soltaram uma nota pública argumentando que somente uma lei editada pelo Congresso Nacional poderia regular a matéria.

Na nota, alegavam não somente a falta de competência do órgão para legislar sobre o assunto como, mais uma vez, de forma leviana, que esse tipo de proteção à infância seria um cerceamento da liberdade de expressão, confundindo-se com censura. E como já bem observou o jornalista e sociólogo Renato de Godoy em artigo recente, a Resolução 163 não versa sobre a restrição de conteúdo ideológico, político ou religioso, sendo assim o argumento da “censura” falho em sua origem. Será que a criação de normas “protetivas à infância” para uma atividade comercial constitui ameaça à liberdade de expressão, como querem nos fazer crer? E como seriam vistos países como a Suécia, Alemanha, Inglaterra e Noruega, que possuem regras exemplares para a publicidade infantil e têm uma longa história de democracia consolidada? Renato nos faz pensar.

Já para aqueles que defendem os direitos das crianças, a autorregulamentação defendida pelo setor não pode ser considerada suficiente para evitar abusos na comunicação comercial, pois conta com normas parciais, criadas voluntariamente por empresas e que não atingem todos os anunciantes e nem se aplicam a todas as estratégias de comunicação mercadológica.

Ao atacar o Conanda, as associações ligadas ao mercado esqueceram-se de que o órgão é vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que tem em sua competência, entre outras funções, elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente. Suas resoluções devem, portanto, ser respeitadas pelas empresas. Conselhos como o Conanda, assim como as conferências nacionais, são meios e locais para participação democrática da sociedade civil em processos deliberativos. Portanto, como já disse o jurista Dalmo Dallari, em texto sobre a resolução: “Preservou-se o direito constitucional de liberdade de expressão. Limitou-se, porém, o de liberdade de comércio, que deve ser restrito quando ameaça direitos humanos.”

Quando o mercado e as associações do setor publicitário deslegitimam o órgão, elas deixam claro, também, que sua oposição à Resolução 163 é uma estratégia política, e não somente econômica. Seu grande temor é que a exitosa resolução abra caminho para que o debate alcance outros temas, como a publicidade de cerveja e de alimentos não saudáveis ou, em última instância, a criação de um marco regulatório em nosso país. Porém, o que os representantes do mercado ainda não se deram conta, e que precisam aceitar, é que eles também são parte da sociedade, tendo portanto responsabilidade na proteção de nossas crianças. Como já previu o art 227 de nossa Constituição Federal, a criança é prioridade absoluta em nosso país, sendo dever da família, sociedade e Estado fazer valer seus direitos e deveres.

A vigência plena da Resolução 163 do Conanda deveria então ser paradigmática para a proteção integral da infância, mostrando que os direitos de nossas crianças devem prevalecer sobre os interesses econômicos. Depois de mais de um mês da sua promulgação cabe a nós, sociedade civil, fiscalizar se o mercado vai fazer valer a resolução e encarar o 04.04.2014 como uma conquista histórica da construção de uma democracia participativa e uma data que merece ser lembrada em nome de todas as crianças de nosso país.

Não podemos mais pensar em futuro ético e sustentável sem fazer valer os direitos da infância. Nenhum tipo de desenvolvimento econômico, tecnológico ou científico deve ser mais importante que o desenvolvimento biofísico e psicológico de uma única criança. Se acreditamos, de fato, que a infância é o prefácio de um mundo melhor e mais justo, devemos fazer valer a resolução e proteger as crianças de apelos comerciais com vontade política e atitude franca e responsável. Cabe então a todos nós fiscalizar e denunciar práticas abusivas de comunicação mercadológica dirigida às crianças. Um bom começo é conhecer o Projeto Prioridade Absoluta do Instituto Alana.

1 Vítimas da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes: Indicadores de Risco, Vulnerabilidade e Proteção, Childhood Brasil, 2009;Caldas 2010
2 Pesquisa sobre o perfil dos adolescentes e dos servidores da Fundação CASA, 2006.
3 PINSKY, Ilana, Publicidade de Bebidas Alcoólicas e os Jovens, FAPESP, 2009.