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Conversa de publicitária

Conversa de publicitária


Nádia Rebouças – Consultora em Comunicação para Transformação e integrante da Rebrinc

Texto publicado originalmente no Meio & Mensagem.

Pensei no título dessa conversa. Conversa de publicitária contém a dubiedade que me interessa. Muitos diriam que conversa de publicitário é conversa para boi dormir. Estamos logo seduzindo e querendo vender alguma coisa. Nesses mais de 40 anos em que atuo no mercado sei que ser publicitária desperta o imaginário da “mentirosa”, “marketeira”, aquela (e) que consegue dar nó em pingo d’água, como bom geminiano. Mas pelos meus 40 anos de história no mercado e uma trajetória de questionamentos, desperto alguma curiosidade. Assim arrisco. Arrisco tentar falar ao coração dos meus amigos e colegas publicitários e também aos inúmeros jovens publicitários e jornalistas que têm um ponto de interrogação no topo da cabeça.

Comecei trabalhando com comunicação mercadológica no meio da ditadura. Vi o Conar nascer e apoiei a sua criação. Fui eternamente uma defensora da liberdade de expressão e da livre comunicação. Ainda em São Paulo, na década de 70, talvez 76/77, fiz uma das minhas primeiras palestras, onde destaquei a frase de um poeta uruguaio, Mário Benedetti: “Obedecer cegamente deixa cego, crescemos somente na ousadia.Só quando transgrido alguma ordem o futuro se torna respirável”. Minha vaga lembrança é que quem me convidou a fazer essa palestra foi Luiz Grotera.

Éramos os dois, duas crianças. Lembro do sucesso. Eu falava em transformação no mercado. Falava de minha função na agência e que ela não seria nunca “atender”, mas planejar. Aliás acredito nisso até hoje, apesar de ainda existirem atendimentos nas agências de publicidade. Mas isso não vem ao caso. O caso aqui é que continuo vendo a sociedade se transformar, e pela minha natureza, vou mudando antes mesmo de conseguir entender todo o processo. Afinal estar na vanguarda, transgredindo, tem seu preço.

A recente resolução 163 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), que declarou abusiva a comunicação mercadológica para crianças, é certamente um desses momentos. Como conheço muito bem o território da publicidade, sei o quanto isso deve estar chocando e incomodando anunciantes e agências. Por isso resolvi escrever. Nos últimos 15 anos deixamos que a ingenuidade e a alegria da publicidade se perdesse num mercado cada vez mais “dono do mundo”. A propaganda para as crianças começou a traduzir nossa vontade de transformá-las em adultos o mais rápido possível. A inocência nos incomoda. Vivemos o tempo do “resultado” e colocamos isso como meta nos afazeres executivos de nossas crianças. As mães trabalhando e a crucial falta de tempo contribui. Natural que a publicidade e os produtos para crianças respondessem a esse movimento. Colhemos um tempo, que creio, nenhum de nós assina embaixo. Mas algo ocorre que não conseguimos perceber as teias que constroem aquilo que não gostamos de ver na nossa sociedade. Nós publicitários ficamos com nossas conquistas pessoais, com os lucros e louros colhidos, perdidos de nossa consciência, no louco dia a dia de nossas vidas.

Para sair disso é preciso muita coragem. Eu não sei bem como aconteceu, mas ela começou a me atacar no meio da década de 90. Portanto, já faz muito tempo!

Fui conselheira do Conar até uns seis anos atrás, quando deixei de ser chamada para as reuniões. Talvez o motivo tenha sido apenas, mais uma vez, não seguir a maioria e passar a refletir.

Também entraram no meu escritório cassando meu direito de agência, porque eu não veiculava, apenas planejava. A intensa competitividade dos publicitários para ganhar clientes se esvanece na constituição de chapas para as associações do mercado, que se substituem. Nunca temos eleições, são sempre chapas únicas, não há debates, discordâncias. Isso é tão forte que levamos 30 anos para fazer um congresso e na sua realização não existiram ideias em debates, apenas acordos.

Há uma união na defesa do negócio imediato, no status quo, que faz com que nossa tão falada criatividade resulte numa imensa neblina para nossos modelos de gestão, para os modelos operacionais, para nossas filosofias de trabalho.

Eu apenas continuo precisando refletir e necessitando de espaços inteligentes de debates de ideias. Intensifiquei minhas reflexões sobre o que se passa conosco e com a sociedade e, claro, fui encontrar novos espaços que permitissem que eu seguisse minha natureza. Comecei a perceber que a sociedade mudava e mudaria muito. Percebi também que nós publicitários temos um medo avassalador de mudar. Até porque não basta a nossa mudança, as empresas teriam que nos aceitar, mudados, para conseguirmos continuar vivos. As pressões sobre nosso mercado só aumentaram. As tristes realidades sobre o planeta e a sociedade se intensificaram.

Pensar e mudar será a única forma de enfrentar as inúmeras pressões que afetam nossa reputação. O mercado sabe que não haverá solução. As empresas terão que desenvolver novos produtos, os publicitários vão ter que investir em novas linguagens, o que hoje já acontece de maneira tímida, mas quem está ganhando no imediato resiste a perceber as perdas, ainda maiores, apontadas no futuro. Isso acontece com tudo: com alimentos (e agora os frangos não têm hormônio), com novas soluções de energia, com sucos, com alimentos sem glúten, sem lactose, com o fascínio pelas bicicletas, com arroz e feijão no Mac Donald’s, com produtos de todas as categorias. A visão do lucro é sempre a curto prazo, nem que a longo prazo estejamos afetando a vida do planeta, a nossa saúde, a de nossa sociedade, e pior, a nossa felicidade.

Temos futuro. Porque tudo foi sempre mudando. Com cigarros não foi assim? Nós, que tanto sabemos fazer pelo consumo, podemos conferir um papel estratégico ao nosso trabalho e ajudar na construção do inevitável futuro, apressá-lo, vender os novos valores.Planejamento não perde sua função. Sabemos seduzir e podemos seduzir para novos resultados.

Criança é um assunto sério. Não adianta dizer que cada família resolve. As notícias estão aí nos mostrando as feridas que a comunicação (não só a publicidade, mas toda ela), a falta de políticas públicas, a pouca seriedade com as boas políticas existentes e os produtos que resolvemos vender com excesso de açúcar ou sódio estão desenvolvendo. Construímos os valores das famílias, das escolas, das nossas ruas. Com toda liberdade. Mas a liberdade contém responsabilidade. Temos novas tribos atuantes no mercado e armadas com as redes sociais. É nossa responsabilidade mostrar essa nova realidade para nossos clientes. A sociedade começa a dizer não. Não vai parar de consumir, só é mais informada e mais autônoma do que nas décadas anteriores. Se “ouvirmos” sem medo o que pensam os interlocutores, analisarmos as informações disponíveis sobre nossos desafios econômicos, sociais e ambientais não há saída, temos que nos transformar.

Precisamos assimilar que o consumidor virou interlocutor e tem um poder imenso, porque de várias formas ele é publicitário e jornalista. No dia a dia, no Conar, nas nossas pesquisas, que vão ajudar nossos clientes a vislumbrarem como ter reputação de marca, podemos fazer diferente. Ajudar a construir o país que desejamos pode não mais parecer uma tarefa pouco importante para os profissionais de comunicação. As mudanças não vêm pela resolução do Conanda, mas sim o Conanda traduziu uma sociedade que quer fazer novas escolhas, escolhas mais conscientes. A decisão simples de cumprir nossa Constituição, artigo 227: criança prioridade absoluta.

Sei que talvez para muitos eu seja, como sempre, uma sonhadora, mas preciso reafirmar a coerência de minha trajetória, até porque não me sobra todo o tempo. O compromisso dos negócios do futuro, da comunicação mercadológica, será a manutenção da vida no planeta. A emergência será cada vez maior. Não porque eu queira, mas porque exageramos em tudo. Consumimos tudo. Precisamos plantar vida, educação, comprometimento, responsabilidade.

Se me permitirem, continuo a ser publicitária. Continuarei a me perguntar porque não há debates para as eleições de chapas para as instituições do mercado. Continuarei a me perguntar porque nenhuma mulher até hoje foi eleita como presidente dessas instituições, quando são cerca de 70% das trabalhadoras do mercado. Ou por que não chegam ao comando das agências. Pergunto com liberdade porque cheguei até aqui, e aqui o poder não faz mais sentido.

Minha vida está dedicada ao aprender, entender e agir onde eu puder. E eu aprendo com os jovens, que não têm vergonha de buscar o empreendedorismo, os hubs, a co-criação, o crowd- funding, com coragem para se manifestar. Eles que estão criando novos modelos de comunicação no mercado. Aposto na possibilidade de um novo Conar, que seja vanguarda outra vez. Aposto numa nova comunicação que venda, mas sem precisar deseducar. Novos empresários que criem novos alimentos. Novos brinquedos. Arquitetos que criem novas casas, espaços públicos, com compromisso com a mobilidade urbana, um novo jornalismo. Novo mundo.

Essa é a minha conversa. Uma nova conversa. Como somos resistentes a mudanças, apenas um passo poderá representar muito. A resolução do Conanda não é lei? Estejam certos de que o mais importante é que ela chega e aumenta a massa crítica de ideias que começaram pequenas nos últimos 10 anos. As redes se organizam, é só pesquisar as famílias que buscam novos modelos de vida. Descobriremos que um novo mundo está emergindo no desejo dos interlocutores. O tempo da publicidade massacrante, que não conversa, que não olha pelos mais fracos, e não são só as crianças, está chegando no seu limite. Os pais que vivem um momento de imensa dificuldade para educar seus filhos, não vão se calar. Querem conversar.

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