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Tempo ou tempo de relógio?

Tempo ou tempo de relógio?


Por Nádia Rebouças – Consultora de Comunicação para Transformação na empresa Rebouças & Associados e integrante da Rebrinc

Texto publicado originalmente na Plurale em Revista Ed 42.

 

Não traiam as crianças! Não prometam acolhê-las quando vai desconsiderá-las. Não prometam levá-las a brincar quando vai ordena-lhes que se sentem e fiquem quietos. Porque o que um professor faz, às vezes, sem dar-se conta, é claro, é frequentemente trair as crianças em função do que quer que elas façam. Por um lado acolhe-as, mas na realidade as distingue, fazendo com que vivam isso como uma traição. O menino chega à escola infantil e o professor diz “venha aqui, você vai brincar com as outras crianças!”. E depois que a criança aceita, ele diz: “Bom, agora fica sentadinho aqui!”. Isso é uma traição! As crianças sabem exatamente quando alguém promete algo e não cumpre, e sentem-se traídas. Isso gera dor e produz sentimentos, porque é uma negação de nossa condição amorosa.
Entrevista de Maturana no Humanitates.

A frase do título, cheia de profundas perguntas, me chegou durante a apresentação de Renata Meirelles no Fórum que lançou o novo projeto do Instituto Alana – Prioridade Absoluta. Durante o lançamento,composto por três dias de conversas com especialistas de várias áreas, ficou claro que só na Constituição criança é prioridade absoluta, mais especificamente no artigo 227. É mais uma daquelas verdades que não são verdades, verdadeiras, como costumam perguntar as crianças.

Falta de saneamento básico para milhões, causando doenças, escolas sucateadas e de difícil acesso, falta de vagas – só em SP, nossa maior cidade, faltam cerca de 150.000 mil vagas em creches -, professores sem condições ou preparo para o trabalho, poucos espaços de lazer entre muitos outros problemas nos obrigam a responder. Não, não é prioridade.

Mas a grande pergunta que colocou toda a audiência do Fórum em atenção foi feita por uma criança para Renata Meirelles, que teve o privilégio de viajar pelo Brasil, com sua família durante dois anos documentando as brincadeiras das crianças brasileiras, num projeto do Instituto Alana. Em breve todas as suas descobertas vão virar um documentário da produtora Maria Farinha. Durante a viagem uma criança perguntou a ela: “Mas a gente vai ter tempo, ou tempo de relógio?”

Temos oferecido muito tempo de relógio para as crianças, sem liberdade para o brincar ou para a alegria. Temos para nós mesmo cada vez mais tempo de relógio. Cidades com problemas, cada vez com pior mobilidade, prejudicam, impedem a presença dos pais em casa ou condicionam nosso tempo. Produtos prontos para consumo rápido, desenvolvidos para atender o sabor, sem preocupação com a saúde, levam à obesidade infantil, diabetes, e problemas do coração.

Num mundo que o tempo não mais existe, quantas revelações a pergunta dessa criança faz emergir? Entregamos em primeiro lugar tempo para nossas crianças, quando apressados, produzimos e atuamos no tempo de relógio? O tempo de relógio não seria o formato do tempo a que Maturana se refere na citação acima? Quando nossas vidas se desenrolam através das datas de varejo, que se seguem na volúpia do consumo,transformamos nossas próprias vidas num grande relógio. Às vezes o relógio fica tão gigante que parece correr atrás de nós. É só lembrarmos um Natal, uma Páscoa ouum Dia da Criança. Estamos criando uma sociedade cada vez mais doente?

Naquele instante ficou claro para mim que precisamos de tempo para refletir, sermos mais competentes na tarefa de educar, de produzir tempo útil, saudável e agradável para as nossas crianças.

Temos uma comunicação mercadológica intensa, fazendo da criança um adulto menor, educando insistentemente para o ter. Despertando a sensualidade precoce e colhendo gravidez na adolescência. Recolhendo as crianças oriundas de enormes dificuldades econômicas e familiares para depósitos, onde se aprende mais violência e o desrespeito.

O estímulo constante ao consumo nos entrega o tempo de relógio, sem tempo para ser. A recente resolução do Conanda – Conselho Nacional doa Direitos da Criança e do Adolescente – um Conselho que reúne sociedade, governo, organizações sociais, emitiu a resolução 163, na qual considera a comunicação mercadológica para crianças abusiva, e imediatamente despertou muitas críticas. Muitas até afirmando que a resolução do Conanda nada significa, que só valeria uma lei.

“Isso é cercear a liberdade, os pais é que tem o dever de acompanhar os filhos e dar os limites!”

“A TV e a escola devem ter o livre acesso do mercado”.

Enquanto isso as embalagens não esclarecem. Os alimentos têm tudo em excesso – sódio, açúcar, gordura, agrotóxicos.Os brinquedos voam, andam, atacam, nadam, mas só nos comerciais da TV.Como nada do que a comunicação mostrou ele é capaz de fazer, chegando em casas e tornam obsoletos em horas. Podemos medir pelo tempo de relógio. Depois dos vários sacrifícios para comprar, a surpresa é ver a criança se apropriando do tempo e brincando com a caixa e as canetas coloridas que já possuía.
Maurício de Souza, após a resolução do Conanda, publicou pelo Instagram uma foto de uma criança de cerca de oito ou nove anos, segurando um cartaz, como nas manifestações de junho de 2013, com os dizeres: “Eu quero ver propaganda!” A gritaria na rede foi tanta que ele foi obrigado a retirar a foto e se retratar.

Nossa sociedade está mudando. Falamos muito em sustentabilidade, mas precisamos para isso ter também um olhar para a comunicação mercadológica. Os pais que vão ganhando consciência entendem que quando pedem limites para a comunicação não têm a intenção de cercear liberdades, mas o direito de fazer escolhas. O que não se deseja mais é que nossas crianças fiquem reféns de interesses comerciais, que não têm nenhum compromisso com a educação e a qualidade de vida. Os pais começam a perceber que a falta de um olhar sistêmico sobre as consequências da liberdade mercadológica afetam toda a sociedade. E quem está satisfeito com os valores atuais? Não queremos sustentabilidade?

O Conanda apenas traduziu uma sociedade em transformação, que está fazendo novas escolhas. Afinal, todos não são favoráveis à melhora da educação no Brasil? Será que os lares e a escola transformados em palco de ações comerciais são resultado da nossa intenção de priorizar a criança e o adolescente?

Educamos todos os dias, e não somente os pais são a influência. Educamos o olhar, o ouvido, o paladar, o tato e a consciência de nossas crianças. Essa é uma responsabilidade compartilhada por toda a sociedade. Estamos num ponto de mutação da nossa civilização. Enganados estão aqueles que acreditam que tudo tem que ficar como está. Não ficará. Todas nossas escolhas estão em questão nesse momento. As empresas, que pesquisam tanto, sabem disso. Esticam o cordão para não prejudicar ganhos imediatos, mas sabem que a mudança é inevitável porque o consumidor virou interlocutor e ganhou poder com as redes sociais. É hoje um interlocutor que aprende como nunca! Troca como nunca! E faz novas escolhas para si e suas famílias. A empresa vai precisar acompanhar, se quiser ter permanência e reputação.

O planeta e a humanidade sofrem as consequências. A criança está no centro dessa mudança. Ser pai e mãe nesse momento da nossa história se tornou uma tarefa hercúlea. O projeto Prioridade Absoluta toca a campainha, o sino, grita e dá ferramentas concretas para a atuação da sociedade. Vejam no site. O projeto cria um movimento para que seja cumprido o artigo 227 da nossa Constituição. A resolução do Conanda é uma pequena parcela dessa mudança. Pequena, que vai produzir muito debate, mas também muito diálogo entre aqueles comprometidos com educação e aqueles que atuam no mercado. Verdade verdadeira que fazer publicidade é uma delícia. Sou publicitária há 40 anos e sei que fazer uma comunicação para um novo tempo da civilização pode nos salvar. Precisamos, para refletir, de tempo de verdade verdadeira e não tempo de relógio.