Financiamento coletivo democratiza a produção cultural para crianças
Por Desirée Ruas/Jornalista Rebrinc (Foto do destaque: Luciane Guirlanda)
Como viabilizar um espetáculo, um livro, um DVD ou um CD de qualidade de forma independente? Para muitos músicos, escritores, artistas e contadores de histórias o único caminho para a concretização de seus projetos é o financiamento coletivo ou crowdfunding. Dentro do conceito de economia colaborativa, as plataformas digitais reúnem projetos e apoiadores e facilitam a realização de campanhas para a viabilização de diversos tipos de ações.
Para muitos artistas e escritores, o financiamento coletivo permite a produção de obras para a infância da maneira que elas merecem: sem apelos comerciais e com muita qualidade, originalidade e respeito. Sem ter que se submeter a interesses comerciais de empresas, o financiamento coletivo permite produções culturais criativas e independentes.
Atualmente existem várias plataformas digitais para a viabilização de projetos. A ferramenta democratiza a produção cultural já que livros e CDs, por exemplo, saem por um preço mais acessível para o comprador. Por outro lado o crowdfunding permite que artistas independentes e sem recursos próprios consigam finalizar suas produções sem a intermediação de editoras ou gravadoras.
Há vários formatos de financiamento coletivo. No mais comum deles, os recursos chegam por meio da pré-venda dos produtos. O apoiador faz uma compra antecipada e com o dinheiro arrecadado a obra é produzida. Em seguida, os apoiadores recebem os produtos que ajudaram a tornar realidade. Um valor financeiro e um prazo são definidos no início do processo. Há recompensas variadas de acordo com a ajuda financeira. Quem apoia a produção de um CD, doando um valor maior, pode ganhar o direito de participar de um show, por exemplo. A criatividade na hora de definir as recompensas ajuda muito no sucesso da arrecadação. Em muitos casos, o modelo adotado é o “tudo ou nada”. Caso o valor definido não seja alcançado no prazo, os apoiadores recebem o dinheiro de volta e o projeto não se concretiza.
CD “Canções para brincar e ser feliz” do Quintal da Guegué
Há vinte anos na estrada levando música e diversão para crianças de todas as idades, Guegué sonha com o seu primeiro CD de música infantil. A trilha sonora que alegra os espetáculos do Quintal da Guegué estarão em breve no CD “Canções para brincar e ser feliz”. Por meio de um financiamento coletivo, o grupo de Belo Horizonte – formado pela atriz e brincante Guegué e pelo Lobo, o músico Paulo David – irá concretizar o projeto que reúne canções autorais e de domínio público. A meta de arrecadar os 18 mil reais necessários para o projeto foi alcançada e o CD vai virar realidade.
Há um ano e meio o grupo começou a escolher o repertório e o arranjo musical das faixas que vão compor o CD. Entre as músicas selecionadas, há canções conhecidas do público que acompanha seus shows e outras inéditas. A faixa “Sr. Cérebro”, de autoria do músico e compositor Paulo David, é uma das novidades e conta, de forma simples e divertida, como é esse órgão que comanda o corpo. Grandes músicos como Bruno Tonelli, Dudu Nicácio, Sami Erick e banda Pá Tum Pléin também participam do CD.
Guegué conta que o Quintal é um misto de linguagens expressivas que integram suas paixões: música criativa, histórias cantadas, brincadeiras musicais, além das crianças. “Minha maior dedicação era descobrir como levar tudo isso às crianças de forma que elas apreciassem e pudessem participar ativamente e não apenas como ouvintes. Eu queria que elas interagissem umas com as outras, desbloqueando emoções e sentimentos, manifestando amor e afetividade, através das brincadeiras”, explica a atriz e contadora de histórias. E assim são os espetáculos da Guegué e o Lobo, com intensa participação das crianças e das famílias. “Nosso repertório é um convite a fantasiar, inventar, movimentar, abraçar… porque criança é assim: sempre disposta a experimentar, criar, sonhar e ser feliz”, explica Guegué. Com a obra, as crianças vão poder levar para casa um pouquinho do seu show lúdico. Para conhecer o CD (que já está pronto), acesse a página do Quintal da Guegué.
Livro-CD “O mundo de dentro e o mundo de fora”
O músico Isaac Luís e a contadora de histórias e atriz Juliana Daher formam a Companhia Pé de Moleque – Arte e Cultura para a Infância. O trabalho artístico da dupla reúne histórias narradas e um repertório musical constituído por canções autorais e do cancioneiro popular infantil tradicional, bem como brincadeiras musicais. Em 2016 eles lançaram o livro-CD “O mundo de dentro e o mundo de fora” com poemas criados durante a gestação e os primeiros anos de vida do filho Francisco. Ao todo, 319 pessoas apoiaram o projeto de financiamento coletivo.
Eles contam que a opção pelo financiamento coletivo foi devido ao desejo de manter um padrão de qualidade. “A gente não queria abrir mão de uma ilustração feita em aquarela, nem abrir mão da banda que tocou no CD e da direção musical. Para sair do jeito que a gente queria tivemos que bancar um projeto independente. Mas a gente não tinha um centavo”, recorda Juliana.
O financiamento coletivo era a solução. O grande desafio da dupla era sensibilizar as pessoas para que elas tivessem clareza de que tinham esse poder de viabilizar o projeto. “Os apoiadores foram muito protagonistas. Isso foi muito legal porque ao longo da campanha algumas famílias foram abraçando tanto a campanha e elas se sentiam também autoras responsáveis pela viabilização do projeto. Foi muito bonito de ver”, comemora Juliana.
Para Juliana e Isaac, quando um artista faz um trabalho por meio de uma editora ou gravadora, muito da lógica de mercado fica impregnado na obra. “A gente quis fugir um pouco disso e é o que nós tentamos sempre fazer enquanto artistas independentes. Queremos manter uma coerência ética e estética e eu acho que é a independência que permite manter esta coerência”, explica Juliana. (Para adquirir o livro-CD, faça contato pela página da Cia Pé de Moleque.)
DVD “Amaranto e Orquestra de Câmara de Ouro Branco”
A cantora Flávia Ferraz e suas irmãs Marina e Lúcia formam o Trio Amaranto com CDs lançados para o público adulto e infantil. Afinadíssimas, elas emprestam seu talento para a promoção da arte e da cultura por onde passam. E para isso elas têm o financiamento coletivo como uma ferramenta importante para a realização de seus projetos. Em 2016, o DVD “Amaranto e Orquestra de Câmara de Ouro Branco” foi viabilizado por meio do site Catarse com a ajuda de 369 apoiadores. Flávia conta que foi uma experiência muito rica já que atualmente as fontes de financiamento de cultura – tanto públicas quanto privadas – estão minando drasticamente. “A melhor opção que temos para seguir na luta por bons conteúdos é mesmo o financiamento coletivo. Cria-se uma rede de boas energias em torno de um objetivo comum. Criar um projeto que faça sentido não apenas para o artista, mas também para as pessoas que o acompanham é uma ideia bonita”, lembra Flávia.
Em um outro trabalho, o Trio Amaranto realizou um financiamento coletivo sem o uso das plataformas digitais. O livro-CD infantil “A Menina dos Olhos Virados” foi viabilizado em 2012 por meio de uma campanha de pré-venda feita diretamente com os seguidores do Trio nas redes sociais. Com o dinheiro arrecadado, foi produzido o livro-CD. Uma outra iniciativa do Amaranto, em 2006, também seguiu a mesma linha. No lançamento do CD dedicado ao público infantil “Três Pontes”, o trio realizou uma campanha inédita arrecadando recursos nas redes sociais para levar crianças de baixa renda para assistir ao espetáculo. “Foi uma ideia inovadora que deu muito certo”, relembra Flávia Ferraz. (Veja um trecho do DVD aqui e saiba como adquiri-lo na página do Amaranto.)
Guia “Beagá pra Brincar”
O movimento Na Pracinha também fez uso de uma plataforma de financiamento coletivo para a publicação do Guia Beagá para Brincar, lançado em junho de 2017. “Foi muito gratificante receber o apoio dos leitores e parceiros do Na Pracinha para viabilizar o guia. Nosso intuito sempre foi promover o brincar pela cidade e torná-la mais próxima de nossas crianças. A rotina cotidiana da grande maioria das famílias tem criado um distanciamento da cidade. Desconhecemos seus encantos, os espaços, museus, parques…”, conta Flávia Pellegrini, idealizadora do Na Pracinha ao lado de Miriam Barreto. Ao todo 645 pessoas apoiaram o financiamento do guia feito pela plataforma Catarse.
O Guia Beagá para Brincar reúne mais de cem passeios para as famílias e suas crianças, entre praças, parques, museus, espaços de convivência, bibliotecas e centros culturais, com informações detalhadas sobre cada local existente na capital mineira. O livro apresenta ainda reflexões sobre a infância, a cidade e a natureza. A Rede Brasileira Infância e Consumo também participa da publicação com um texto sobre “O brincar, o consumo e a infância” da jornalista e integrante da Rebrinc Desirée Ruas. (Para adquirir o livro basta acessar a loja virtual ou pela página do Na Pracinha)
Livro “Infância fora da Asa”
No Rio de Janeiro, uma outra dupla também tem a pracinha como motivação para pensar a infância. Maria Inês Delorme e Angela Borba são as criadoras do Papo de Pracinha. Com a ajuda de 122 apoiadores elas conseguiram finalizar o livro “Infância Fora da Asa” que reúne textos do blog.
“Ter o apoio daqueles que defendem uma vida solidária, mais humanizada e parceira fortalece muito as nossas ações em defesa de uma questão nobre, como é o caso da vida das crianças e as infâncias”, comenta Angela. Na opinião de Maria Inês, “a participação e a união fortalecem o compromisso entre a sociedade organizada com a vida feliz e cidadã das crianças, ampliando o interesse e a defesa pelo que lhes é de direito e pelo que lhes dá alegria”. Para elas, conseguir ter o sonho realizado em função da contribuição efetiva de tanta gente, por meio do financiamento coletivo, mostra que estão no caminho certo e que vale a pena querer ampliar os espaços de reflexão sobre a vida das crianças e de suas famílias em diferentes espaços. “O livro “Infância Fora da Asa” é uma prova disso e será lançado na Bienal do Rio, o que equivale a uma celebração coletiva, ampliada. Estamos muito felizes”, comemoram as autoras do livro.
Para Maria Inês, “O financiamento coletivo de projetos como esse se coaduna completamente com o ideário do Papo de Pracinha, com o fato de as crianças serem responsabilidade de todos nós, de todos os adultos que são parte da sociedade em que ela vive”. O livro “Infância Fora da Asa” será lançado na Bienal do Rio de Janeiro no dia 9 de setembro de 2017. (Mais informações e vendas pela página do Papo de Pracinha.)
Os desafios do financiamento coletivo
Sobre as facilidades e dificuldades do financiamento coletivo, o músico Isaac Luís, da Cia Pé de Moleque, lembra que o produto sai mais barato para o comprador pois não tem os custos da editora e da loja embutidos. “Quando há a editora existe uma facilidade para o escoamento do produto mas o que fica para o autor é apenas oito ou dez por cento do preço de capa por exemplar, o que é quase nada”, na opinião de Juliana Daher. Ela explica que o artista que faz esta opção tem uma série de desafios que não são pequenos. “Conseguir captar recursos sensibilizando pessoas é algo muito desafiador e que demanda um tempo enorme. A gente teve que ficar praticamente vinte dias com dedicação exclusiva para a campanha, por doze ou quatorze horas por dia. Mandamos mensagens e fizemos ligações para pedir às pessoas, uma a uma mesmo, de forma individualizada”, relembra.
Outros desafios, segundo Juliana Daher, são os gastos com a divulgação da campanha e a entrega do produto para os apoiadores e a venda dos demais exemplares que tem que ser feita por conta própria. “O artista, com certeza, tem mais dificuldade de circulação mas nada que a gente não consiga suprir levando o produto para nossas apresentações. É um tempo maior que precisamos para ter um retorno mas no final das contas vale a pena”, avalia. “Mas as vantagens se sobrepõem quando você tem uma autonomia na gestão do projeto. Significa uma coerência estética, com o que você deseja fazer, e uma coerência ética, porque são os seus valores, os seus princípios de arte, de infância, de cultura que vão nortear esse trabalho”, frisa a dupla.
Para Flávia Pellegrini, do Na Pracinha, projetos autônomos e sem publicidade direcionada são de grande relevância por respeitar a autenticidade da produção. “Buscar o financiamento coletivo não é fácil, mas possível. O resultado positivo só fortalece a ideia de que há público que deseja um conteúdo livre de ações mercadológicas e valoriza as iniciativas,” conta a autora do Guia Beagá pra Brincar.
Sobre as dificuldades vividas durante o processo de busca de apoiadores, Flávia Ferraz, do Trio Amaranto, que também fez a direção musical do CD de Juliana e Isaac, diz que não foi uma fase muito tranquila. “Passar por uma campanha de financiamento coletivo gera ansiedade e exige muito esforço de comunicação daquele que se propõe a fazê-la. Mas o retorno também acaba sendo ainda mais prazeroso. A vitória de quem lança a campanha é uma vitória de cada um que a apoiou, seja com valores em dinheiro, seja divulgando e espalhando a notícia”, enfatiza Flávia Ferraz.
Solidariedade entre os projetos
“Depois que a gente passou pela produção do nosso livro-CD vimos que é muito puxado todo o processo. E não é um favor do apoiador. É a venda antecipada de um produto, é música de qualidade, livro de qualidade, cultura de qualidade para seu filho, para sua família. E é um processo que exige que a gente se reinvente enquanto artista, enquanto empreendedor de seu negócio e de sua marca, da sua imagem e do nome que você quer que chegue até as pessoas. Tudo é incrível porque você entra num ciclo de economia colaborativa que é muito bacana”, afirma Isaac Luís.
“Participar da campanha também fez a gente se sensibilizar ainda mais por essa modalidade de viabilização de projetos. Nas plataformas encontramos muitas preciosidades que são os projetos que estão indo na contramão do mercado e dessa lógica alienante. A gente tem apoiado na medida do possível e adquirido muitos produtos através dessa modalidade de financiamento”, revela Juliana Daher.
Com relação ao DVD “Amaranto e Orquestra de Câmara de Ouro Branco”, Flávia conta que sem o apoio das pessoas o Trio teria deixado de oferecer ao público um trabalho de grande qualidade, que também contou com o coral infantil da Casa de Música de Ouro Branco. “A gravação do DVD envolveu jovens estudantes de música, configurando assim também um estímulo à busca por mais conhecimento e por profissionalização por parte da orquestra. É como cantou Raul Seixas: “Sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade…”, incentiva Flávia Ferraz.
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