Crianças e armas
Por Ana Dietmüller* – Graduada em Direito, colunista pela Áustria no Blog colaborativo Brasileiras pelo Mundo e integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo
Quando visitei o Museu do Brinquedo na cidade de Nuremberg, na Alemanha, uma seção em especial me causou certa estranheza: na ala de brinquedos históricos, havia réplicas de Hitler, exércitos nazistas, soldados, tanques, aviões, todos com a suástica e demais símbolos nazis. Aqueles eram divertimentos infantis, absolutamente normais, da década de 30.
Um pouco estupefata diante daquilo, perguntei-me o motivo de exporem inclusive esse tipo de material. Para que se compreenda a resposta, é necessário um breve informe sobre a chamada Cultura da Lembrança, bastante praticada sobretudo na Alemanha e Áustria, que foram países, infelizmente, nazistas. A Cultura da Lembrança se calca no princípio de que as ocorrências da maior catástrofe humanitária do século XX, a Segunda Guerra Mundial, devem ser, sempre que possível lembradas, conhecidas, estudadas, expostas para que jamais qualquer semelhança com o regime, e o que ele ocasionou, se repitam. Pois bem, aqueles bonecos estavam ali para que se tenha atenção no quando as coisas começaram, por onde se infiltraram e o restante da história nós todos conhecemos.
A propaganda da época já estimulava a infância a brincar de guerra e a endeusar Adolf Hitler. Desde muito cedo, os alemães a austríacos brincavam de beligerância. A preparação estava em marcha.
Assistindo a um documentário, austríaco, sobre a doutrinação nazista nas escolas, uma aluna da época – hoje com mais de 80 anos – expôs como se davam as aulas de matemática, por exemplo: “um soldado, mais um soldado é igual a dois soldados; 4 tanques, menos 2 tanques é igual a 2 tanques”. Essa era a linguagem “pedagógica” utilizada para ensinar crianças da escolinha primária. Era um programa de Estado! Uma geração inteira sobre a qual foi praticada severa lavagem cerebral, de forma institucionalizada.
Embora os discursos e métodos governamentais voltados à infância e juventude fossem propagandeados como o melhor e mais moderno para as crianças daquele tempo, o que estava, de verdade, por detrás é o que nós, hoje, sabemos: a preparação para o maior conflito bélico do século passado. Até que se concretizasse, estava tudo aparentemente muito bom aos olhos de milhares de pais e mães do III Reich.
Hoje, passados mais de 70 anos da tragédia que foi a II Guerra Mundial, meu filho e todos os demais aluninhos do seu Jardim de Infância, aqui na Áustria, quando do bailinho de carnaval, não podem portar nenhuma arma de brinquedo. Nenhuma! O aviso é colocado na porta da escola, uma semana antes do baile, informando que, caso a arma faça parte da fantasia, será retirada na entrada e devolvida ao fim da festa. Parece que eles aprenderam um pouco com a dor e a destruição por que passaram: escolas infantis não toleram, nem de brincadeira, material bélico.
Durante as comemorações de Páscoa, as igrejas fazem encenações com as crianças. Meu filho foi o Rei Davi em uma delas. Símbolos de poder real foram explicados e mostrados aos pequenos: havia coroa, manto, cetro, um cavalinho de pau, tudo físico, de plástico ou madeira, todavia, na hora de explicarem e apresentarem a força real, através da espada, surpreendi-me novamente, pois o que veio foi apenas uma folha grande com a foto de uma espada. Poderiam ter trazido uma espadinha plástica ou de madeira. Novamente não!
Embora os bisavós das crianças na idade do meu filho não tenham manifestado resistência alguma no tempo do nazismo quanto a formação de seus filhos, as gerações posteriores parecem ter feito sua lição de casa. Que as famílias comprem pistolinhas ou espadinhas de brinquedo para suas crianças, faz parte do livre arbítrio, mas, ao que parece, do Estado esse estímulo não vem mais.
É, então, verdadeiramente necessário que coloquemos armas nas mãos de nossas crianças e jovens?
Como mãe de um menininho de 6 anos de idade que tem bastante amiguinhos, posso falar com tranquilidade que, aqui, nunca os vi brincar de polícia-ladrão por exemplo. Nunca. Até há brincadeiras de cavaleiros, castelos, mas, de polícia-ladrão, não. Não há discurso que estimule e nem assaltos como conhecemos no Brasil. Há policiais, aqui, que relatam nunca terem sacado a arma em serviço por ser totalmente desnecessário. A Áustria está no ranking dos países mais seguros do mundo. Em resumo, não há violência que sirva de lastro para retórica armamentista e nem exemplo negativo a ser seguido pelas crianças.
Pergunto-me então: como se chega nesse patamar de policial não precisar usar sua arma, porque quase inexiste violência urbana? Pelo que percebo daqui não é facilitando o contato de crianças e jovens com armas de fogo!
Como encerramento, deixo a lembrança das palavras de um ex-soldado alemão que, perguntado por jornalistas sobre o que ele gostaria de deixar para as gerações futuras, apenas respondeu que, em troca de pão e emprego, a infância deles foi roubada e a juventude direcionada, deliberadamente, para a violência e morte. Todos acreditavam no sistema e pensavam ser aquele modelo o melhor para a sociedade, entretanto, hoje, passadas décadas, não há um só dia em que ele não lembre, atormentado, das brutalidades que cometeu contra outros seres humanos apenas porque todos entendiam que aquilo era o certo a se seguir! “Jovens, não se deixem manipular, pois aquilo nunca mais pode voltar a acontecer!” Disse ele.
De forma alguma, quero comparar o Brasil ao estado nazi ou que irá deflagrar um conflito bélico. Ambas situações seriam, atualmente, impossíveis. Entretanto, há um fator importante que está presente em ambos tempos históricos: a falta de perguntas, a ausência de consciência crítica e a aceitação. E, se pudermos aprender algo com o passado que seja isso: jamais concordar com situações sociais complexas sem questioná-las!
A solução de muitos problemas está, também, nas perguntas que se faz.
Questione!
Reflita!
Saiba mais sobre a colunista Ana Dietmüller
Nascida em Porto Alegre, em 1974.
Graduada em Direito pela PUC, também de Porto Alegre/RS, em 1996; pós-graduada em Direito Internacional pela UFRGS, em 2008.
15 anos de experiência profissional, militando na advocacia corporativa. Solução, diplomática, de conflitos tanto judiciais quanto de relacionamentos interpessoais, é um diferencial.
Infância feliz, cheia de brincadeiras ao ar livre, na pracinha, com os amiguinhos do condomínio. Muita amarelinha, 5 Marias, bola e bicicleta; aniversários dentro do apartamento mesmo e docinhos feitos pela mãe e avó.
Adolescência inquieta, questionadora e de muito estudo, mas também, de muito cinema, passeio com as amigas, violão e muitas amizades.
Juventude de muito estudo e trabalho, mas, também, de muitas relações humanas, viagens e trocas de experiências.
Moradora da Áustria há quatro anos, casada com um austríaco e mãe de um austro-brasileirinho. Vida simples, mas em um mundo diferente, rodeado de educação, cultura, civilidade e muito investimento no ser humano, sobretudo na diversidade cultural.
Apaixonada por literatura e, por consequência, amante das letras, aventuro-me a escrever minhas próprias linhas.
Meus interesses? História, literatura, filosofia, música, gastronomia, viagens, línguas, mas, principalmente, o ser humano!