A música nas festas infantis
Por Maria Inês Delorme, professora adjunta do Departamento de Estudos da Infância da Faculdade de Educação da UERJ e, criadora do blog Papo de Pracinha e integrante da Rebrinc, e Cacala Carvalho, cantora e preparadora vocal
Gosto do modo delicado como a jornalista Rita Lisaukas critica certas músicas tocadas em algumas festas de crianças que têm, entre seus autores e/ou intérpretes, os citados Anitta, Michel Teló, É o Tchan etc. Gosto, também, da ressalva feita por ela ao reconhecer que muitos pais selecionam com cuidado o repertório musical das festas de suas crianças. É mesmo muito interessante, e desejável, que as mães e os pais escolham, na medida do possível, as músicas que seus filhos devem ouvir. Gostaria aqui, apenas, de ampliar um pouco essa discussão com algumas reflexões sobre nosso universo musical quando falamos de crianças e, em especial, quando pensamos nas festas que são promovidas para elas.
A primeira coisa que passa pela minha cabeça é o volume do som, independente da música que toca, em grande parte das festas infantis. Resta aos adultos e crianças comer e beber sem conversar, pois se torna impossível conversar aos berros para superar o volume praticado no som.
A segunda coisa se refere então propriamente à escolha do repertório. Nem sempre as músicas mais tocadas nas emissoras de rádio e nos programas de televisão são compostas para as crianças, embora sejam muito conhecidas. É preciso observar que a grande mídia seleciona o que ouvimos em massa por critérios totalmente vinculados ao mercado da música. Obviamente, toca mais o que vende mais, o que faz circular mais dinheiro, marcas, o que gera maior investimento financeiro dos patrocinadores. Logo, temas musicais que abordem o sexo, a sedução (temas que vendam muito) começam a ditar o que circula por aí como opção musical para se degustar. Nas festas particulares, em princípio podemos escolher as músicas com critérios do nosso próprio gosto pessoal e senso de adequação. Mas a imposição massiva do mercado não cria opções.
A ideia não é a de colocar as crianças em redomas, como sinalizou a jornalista, mas ao contrário, é oferecer a elas contato com variados tipos de músicas para virem a fazer suas escolhas num universo variado, rico e não restrito ao que já é altamente veiculado pela mídia. Se a escola e a família não cuidarem de enriquecer o repertório com ritmos, harmonias e melodias variados, quem o fará? Criemos opções! Ampliemos nossa cultura musical! A internet é um grande meio de ampliarmos os horizontes e fazermos contato com um universo enorme de compositores e intérpretes, alguns inclusive voltados especialmente para o público infantil. Se ficarmos limitados a ouvir sempre e prioritariamente o que a mídia massiva nos oferece, nos posicionamos numa espécie de redoma também, em nada protetora, e sim muito limitante, na qual acabamos por nos fixar.
Uma terceira questão se remete à erotização das crianças, fenômeno motivado pelas letras e performances musicais do repertório em questão. A quem estamos atendendo quando estimulamos e aceitamos que as nossas crianças dancem nas festas o “rebolation”, usando roupinhas sedutoras para ir até o “chão, chão, chão”, porque vai começar a “delícia se eu te pego”? Sinceramente, muito provavelmente elas estão se divertindo sim, porque criança se diverte sempre, e em qualquer condição. Só que estamos inventando nelas mini adultos que tem seu corpo erotizado quando ainda nem entendem aquilo que seus hormônios, no momento certo, bem mais adiante, vão começar a fazê-las perceber e praticar. Concluo que estamos irrefletidamente usando nossas crianças para vender o sexo como o principal motivador de diversão infantil. Estamos criando uma associação direta na cabecinha delas entre o sexo, a diversão (prazer) e o mercado no qual passivamente nos postamos como consumidores e repetidores sem criatividade. Isso sem falar em toda a sorte de “preceitos” ou regras de orientação sexual (matrizes de preconceitos) que por vezes aparecem nas letras das músicas: “mulheres na frente, os homens atrás, mão na cabeça que vai começar o rebolation”. Estamos ensinando as crianças a encher de dinheiro as contas das empresas que exploram o sexo como uma mercadoria em todos os sentidos, a despeito da importância das relações de afeto, do aprendizado sobre o corpo e suas funções junto aos amigos, da descoberta de cada nuance do crescimento no corpo, e a despeito do amor. Nossas crianças serão os ávidos e passivos consumidores de mercadorias do sexo, logo ali um pouco mais à frente no tempo. E com o nosso cego aval, se não percebermos nem refletirmos sobre o que estamos apoiando quando escolhemos uma “musiquinha” para tocar na festinha dos nossos filhos.
Um último ponto a que me refiro nessa analise com relativa preocupação se remete ao acesso restrito de crianças a práticas de instrumentos e de musicalização. Ou seja, já no ensino fundamental a música e as linguagens artísticas, em geral, deixam de fazer parte dos currículos das escolas públicas, com certeza, quando não de escolas particulares também. Por anos deixaram. Não há uma valorização das expressões artísticas como deveria haver em nossos país. Se não forem as famílias e as escolas a criar oportunidades de acesso, de contato, de valorização e de apropriação com outras linguagens, que não apenas a leitura e a escrita, talentos não se desenvolvem e a arte vai se tornando apenas uma mercadoria escassa no mercado. Vamos acompanhar a legislação que, agora, parece vir exigir que a música integre o currículo do ensino fundamental, o que não isenta as famílias e os adultos que convivem com as crianças de fazerem o seu papel, que não é pequeno, nem simples.
Leia aqui o texto da Rita Lisauskas “Parem de tocar Anitta nas festas de criança. Apenas parem”
Imagem: reprodução
* Saiba mais sobre a colunista Maria Inês de C. Delorme
Sou casada, mãe de quatro filhos e avó pela segunda vez em 2015. Sou professora de Educação Infantil da SME, Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e, também, do Departamento de Estudos da Infância da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Pós-doutorada em Educação e Ciências da Comunicação, em 2012, Lisboa. Pesquisadora, autora de livros sobre crianças e suas Infâncias, sou, ao lado de Angela Meyer Borba, criadora do blog Papo de Pracinha. O blog é um espaço de diálogo que se destina a pensar sobre a vida das crianças em situações cotidianas. “A referência à pracinha garante o conforto necessário para conversas livres, sem engessamento e pretensão de verdade acabada. As crianças que conhecemos não cabem nos lugares que previamente determinamos e escolhemos para elas, mas, ao contrário, elas excedem, tensionam e muitas vezes contrariam as nossas expectativas.”
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Texto feito especialmente para o site da Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc. Caso queira reproduzi-lo, pedimos que mencione a fonte e o autor, com link para o site. Ajude-nos a valorizar os autores e a divulgar o nosso trabalho pela infância.