Mídia e educação: o que vemos na TV?
Um bate-papo sobre mídia, educação e consumo com o jornalista e professor Marcus Tavares*, integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc.
Qual a sua avaliação do conteúdo hoje disponibilizado na TV aberta, que tem como público crianças, jovens e adultos?
A televisão aberta brasileira faz parte do cotidiano do brasileiro. E isso é fruto de décadas de monopólio de entretenimento. Mas hoje com a possibilidade de acesso a outros produtos, seja na TV fechada ou na web, a produção televisiva da TV aberta é obrigada a se abrir mais. A concorrência dos tempos de hoje força a TV brasileira aberta a repensar seus paradigmas e seus programas: o seu entretenimento. A antiga fórmula e grade já não satisfazem mais o telespectador comum. As histórias ainda encantam e continuarão a encantar, mas de certa forma o público quer outras histórias, outras formas de contar histórias, outras perspectivas e experiências. E não estou falando de um público intelectual ou com maior escolaridade, não. Falo do telespectador comum, médio. Essa reflexão por parte das TVs abertas está tímida. Mas não há outro jeito.
Como a TV tem sido utilizada em termos de educação, cultura e entretenimento?
Acho que pouco mudou nas últimas décadas. Novos formatos de programa chegaram e ou foram importados pela TV aberta brasileira, mas nenhum com a preocupação de fato com a educação e cultura. É lógico que qualquer tipo de programação contribui para o binômio educação e cultura. Afinal, tudo tem a ver. Mesmo a programação dita de menor qualidade, sob um ponto de vista, pode contribuir para uma discussão profícua entre e com o público. Televisão aberta no Brasil é informação e entretenimento. A educação e a cultura estão de certa forma neste bojo, assim dizem as TVs nas entrelinhas. Sim, há programas – poucos – que têm um foco mais específico. Mas é a velha história que já sabemos: os poucos estão ofertados em dias e horários que não propiciem uma audiência mais ampla. A questão é que a TV aberta brasileira é concessão pública. E o que isto significa? Significa que tais emissoras têm de ter compromissos com o Estado. Só que esse entendimento é pouco ou nada repartido/divulgado/discutido com a sociedade. Neste sentido, qual é – de fato – a contrapartida que as emissoras dão ao país, ao povo? Entretê-los é o mínimo que se pode esperar. Isso fazem, seja positivamente ou negativamente. A pergunta é: o que se pode fazer com esta linguagem no sentido de empoderar a sociedade, de promover a cultura brasileira, não o mais do mesmo; de contribuir para a conscientização política (não a eleitoral, nas vésperas das eleições), de promover a criticidade, a inteligência e a criatividade? Não, não há essa contrapartida. Na prática, há um empurra empurra do que deve ser papel da TV pública, da privada e da estatal. E todas as vezes que adentramos nesta discussão, é incrível, ressurge a questão da censura, do controle do estado na comunicação e no cerceamento da informação. Debate inócuo no sentido de que não é essa a discussão. Debate que só atrapalha e não avança.
E no caso específico da programação infantil?
É um grande paradoxo: a criança é vista e entendida por todos os canais como um público-alvo ativo, presente, importante e influenciador. Mas, por outro lado, não é mais vista como audiência de direitos, uma audiência que tem o direito de contar com uma programação cuidadosamente pensada para ela. As crianças hoje estão no bojo do que se chama de audiência da família. As redes apostam cada vez mais em produções para a família. Produções que possam abranger um maior número de pessoas num mesmo horário e dia. Essa estratégia é, digamos, menos arriscada e, portanto menos onerosa, do ponto de vista de mercado, de indústria. Ao que parece, as emissoras não querem investir em pesquisas/projetos para entender o que meninas e meninos querem ver hoje. Para produzirem programas bacanas e interessantes para a infância. Querem, sim, recursos de editais e parcerias para promover tais produtos. Outro contrasenso: como concessões públicas buscam ainda recursos públicos para suas produções. Como do lado dos governos também não há uma preocupação com uma política de produção audiovisual para a infância, os recursos [audiovisuais] são destinados e ou rubricados para outras demandas, não menos importantes, é verdade, mas que não contam com a prioridade que a infância, por lei, no Brasil, tem. Não faltam projetos de programas voltados para a infância. Tenho certeza disso. Mas emperram hoje no orçamento. E a justificativa de que os programas diminuíram ou sumiram em virtude das novas orientações publicitárias voltadas para a infância é de certa maneira uma justificativa ‘confortável’, mas que não se sustenta. Afinal, é possível, sim, criar para criança e com o apoio do mercado. Por que não?
A classificação indicativa existe para que as famílias possam se informar sobre o conteúdo a ser exibido na TV aberta ou por assinatura, cinema, e outras produções audiovisuais. Você acha que as famílias verificam a classificação indicativa da programação que seus filhos vão assistir ou estão assistindo?
Não tenho dúvidas. As famílias se orientam, sim. A classificação é passível de críticas. Mas é o que temos e o que conseguimos – a sociedade – a duras penas frente aos lobbies intensos das emissoras de TV do país. Digo sociedade porque foi de fato um processo da sociedade. Não de um partido ou de um governo, mas de um Estado brasileiro de direito. Pena é que esse debate não esteja na agenda das discussões. E não está porque quem dita a agenda pública é a mídia. E neste país, a mídia é monopolizadora de diversos meios de comunicação. Sim, o quinto poder – as redes sociais vêm abrindo novos espaços, novas brechas, mas ainda não é capaz de ditar a agenda de forma contínua e consistente.
Qual é o cuidado que as famílias têm (ou deveriam ter) com os conteúdos que são exibidos na TV?
Tão difícil receitar os cuidados. Vivemos em famílias, contextos e universos tão distantes. Em realidades tão díspares. Embora possamos identificar que muitas de nossas crianças vivem em suas casas sem apoio e presença contínua de seus pais. Talvez, essa não presença seja o que mais une as crianças dos dias de hoje. Lógico que há algumas exceções. E hoje o cuidado das famílias não deve se voltar apenas aos conteúdos exibidos na TV. E a TV fechada? E os conteúdos da internet? E o que é acessado e pode ser acessado nos dispositivos móveis. Acho que o cuidado mínimo que as famílias têm de ter é acompanhar. É interagir. É dialogar. Porque, desta forma, cada família, no seu contexto, poderá estabelecer seus limites e orientações.
A sociedade se acostumou com a exibição de conteúdos de baixa qualidade? De que forma a população poderia ter um papel de destaque na construção da programação da TV brasileira?
Definir o que são produtos de qualidade ou de baixa qualidade na TV brasileira também passa por uma questão subjetiva. Mas creio que a sociedade se acostumou, sim, a ver conteúdos que confundem o público com o privado, sensacionalistas, violentos e outros que não contribuem em nada com o crescimento, a formação e, inclusive, para um passatempo qualificado. Se as pessoas contabilizassem o quanto de tempo elas perdem com programas totalmente inócuos, elas, talvez, investiriam em outras ações/programas. A questão é que a programação ofertada pelos canais de TV é entendido como uma benesse à sociedade, como um presente. Enquanto este sentimento/sensação ainda fizer presente, nada muda.
Há canais de comunicação suficientes para que o telespectador denuncie conteúdos preconceituosos, apelativos e de baixa qualidade? Como ele pode proceder? Qual o papel da Rebrinc?
Não, não há canais suficientes. Mas existem. E muitas vezes estão ligados aos organismos públicos, como o Ministério Público que aceita e dá prosseguimento às denúncias. Funciona e bem. Temos ainda 0800.619.619, da Câmara dos Deputados, um resquício da Campanha Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania, que ainda recebe reclamações. A questão é: como reclamar/denunciar e ou exigir programas de qualidade se não sei que posso reclamar, que posso denunciar e que posso exigir? Como a Rebrinc pode contribuir para tal reflexão sobre infância e consumo: promovendo o debate, instigando, colocando o debate na agenda pública da sociedade. Se isto não for entendido como uma bandeira, não avança. E mais do que isso: gerar, promover e investigar estudos e pesquisas de qualidade sobre esta temática. A bandeira pela bandeira também não garante. É preciso que haja um estofo, uma gama de estudos que mostrem, ratifiquem a importância de uma mídia mais democrática, plural e de qualidade para toda a sociedade.
* Jornalista e Professor. Doutor em Educação. Pesquisador associado do Grupo de Mídia e Educação (Grupem) da PUC-Rio. Editor da revistapontocom (www.revistapontocom.org.br) e colunista do Jornal O DIA.