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Crianças ao celular: uma epidemia ignorada

Crianças ao celular: uma epidemia ignorada

Por André Aristóteles, pai, educador, ativista das infâncias e co-idealizador do Movimento Lafaiete pela Infância

Não faz muito tempo que, ao vermos na TV parlamentares falando ao celular em plena reunião, um sentimento de indignação tomava conta da gente. – Que falta de respeito! Era o que muitos diziam. À medida que acidentes e mortes por uso de celulares ao volante viraram questão de saúde pública, campanhas publicitárias foram surgindo visando alertar motoristas para não usarem o celular quando estiverem dirigindo. O que essas duas situações têm em comum? Como está a nossa relação com o celular nos tempos atuais? Por que ignoramos a ameaça do celular ao desenvolvimento das nossas crianças?

O que as duas situações acima têm em comum é que não se pode estar inteiro e com atenção plena e qualificada se estamos ao celular enquanto participamos de uma reunião ou dirigimos. Na verdade, nunca estamos inteiros se tentamos fazer duas ou mais coisas ao mesmo tempo. A nossa vida está tão atravessada pelos princípios da máxima eficiência, produtividade e apego ao resultado, próprios do mundo corporativo, que queremos ser produtivos o tempo todo.

Estudos revelam que a nossa “Attention Span”, capacidade de ter atenção, está sendo seriamente prejudicada pelo estilo de vida atual, especialmente pelo uso de smartphones e redes sociais. Especialistas em neurologia e psiquiatria afirmam que a tecnologia é o segundo principal fator a impactar nossa capacidade de concentração e memória. Nos tornamos uma espécie de “sujeito máquina” nos termos descritos pelos pensadores Michel Foucault, Jacques-Lacan e pelo filósofo sul-coreano contemporâneo Byung-Chul Han, autor do livro A Sociedade do Cansaço. Transformamos o nosso escasso tempo de descanso em mais trabalho e muitas vezes um trabalho não remunerado que ajuda a enriquecer os gigantes da tecnologia. As redes sociais viraram um grande big brother em que o narcisismo e o exibicionismo nos fazem obcecados por nós mesmos. Capturamos o pouco “tempo livre” uns dos outros com postagens da nossa intimidade e de conteúdos que pouco ou nada agregam. Aniquilamos o ócio e o tempo livre, o não fazer nada. Nos tornamos peças perfeitas da grande engrenagem do sistema capitalista.

Nos tempos atuais o hábito dos parlamentares de estarem ao celular enquanto participam de suas reuniões parece não nos chocar mais. Estamos todos fazendo a mesma coisa e em diferentes contextos e situações. Será por isso?

Uma família inteira pode ser vista ao celular enquanto engolem suas fatias de pizza numa pizzaria, inclusive crianças de colo. Famílias inteiras ficam ao celular quase o tempo todo dentro de suas próprias casas. Casais estão cada um em seu celular nas mesas de bar. As pessoas estão ao celular no ponto de ônibus, na caminhada, andando de bicicleta, deitadas, assistindo tv, comendo, tomando banho, numa conversa com os amigos, enquanto cuidam de crianças, durante o trabalho, em sala de aula (não apenas alunos, professores também!), inclusive na hora do yoga e da meditação, enfim, a lista é interminável. Não, não adquirimos esses hábitos na pandemia. Mas foi na pandemia da Covid-19 que esses hábitos foram reforçados.

Não se trata aqui de ignorar o avanço tecnológico e a praticidade que o celular trouxe para nossas vidas. Também não se trata de gerar sentimento de culpa. O celular e os aplicativos são feitos para reprogramar o nosso cérebro e nos viciar. Estamos todos no mesmo barco. Trata-se de convidar todos a olharem com responsabilidade – e não com culpa – para a maneira como estamos nos relacionando com o celular e as redes sociais e os impactos disso em nossa saúde e na vida das nossas crianças.

Hoje em dia há evidências científicas robustas acerca dos prejuízos causados pelo uso de celular. Vou trazer algumas delas. Um estudo conduzido por cientistas da Universidade de Heidelberg, na Alemanha, aponta que o celular pode viciar tanto quanto cocaína e outras drogas. Pesquisadores do King’s College de Londres, no Reino Unido, mostraram que 1 em cada 4 jovens está viciado em celular. Especialistas afirmam que as gigantes da tecnologia usam estratégias da psicologia, da neurologia e até dos cassinos para fazer do celular o objeto mais viciante que já existiu.

Ainda sobre evidências científicas dos prejuízos do uso intensivo de smartphones e redes sociais, o relatório State of Mobile 2021 da App Annie apontou que o brasileiro passou em média 5 horas e meia ao celular, 2 horas a mais que em 2019; de cada 10 minutos 7 foram usados com aplicativos de redes sociais. Em outra pesquisa, feita pela Deloitte com 2 mil brasileiros, revelou que 30% das pessoas disseram ter problemas com o uso excessivo do smartphone. Tristan Harris, ex-programador e especialista em ética de design da Google, afirma que o smartphone é tão viciante quanto uma máquina caça-níqueis. Harris saiu da Google em 2016 e criou uma ONG junto com outros programadores horrorizados com os impactos da indústria tecnológica.

Se as evidências científicas mostram que o celular é nocivo para adultos, imagine para nossas crianças. Não é a toa que os donos da Apple e Microsoft, por exemplo, não permitem que seus filhos tenham acesso a smartphones. É importante lembrar que toda criança, especialmente até os 7 anos, aprende por imitação. Elas fazem mais o que nos veem fazer do que o que falamos para fazer. Está cada vez mais raro ver adultos brincando com crianças ao ar livre e cada vez mais frequente ver crianças ao celular porque essa tem sido a opção preferencial dos adultos que as cercam. Existe até o caso de familiares que permitem crianças usarem o celular combinando isso em segredo para que pai, mãe ou ambos não fiquem sabendo, o que é grave. Como se isso não bastasse, ainda tem o fato de as crianças estarem consumindo o que há de pior na internet.

O fato é que o uso de celulares entre as crianças já virou uma epidemia e precisamos compreender porque insistimos em ignorar esse problema. De um lado temos adultos que não estão suficientemente informados acerca dos riscos do uso dos celulares e sem informação não conseguem tomar consciência do problema para então enfrentá-lo. De outro lado existem os adultos que estão informados, tem parcial ou total consciência do problema, mas ignoram os riscos para si e para as crianças. De qual desses lados você faz parte?
Está evidente que uma parcela considerável da população não está se dando conta ou está ignorando a grave ameaça do uso de celular na vida dos pequenos.

No livro “Crescer Saudavelmente no Mundo das Mídias Digitais”, os autores trazem orientações valiosas baseadas em evidências científicas para pais e educadores lidarem com o tema. As orientações variam de acordo com a faixa etária e fase de desenvolvimento da criança.
Gestantes e crianças até os 3 anos devem ficar longe do celular por causa da radiação eletromagnética. Entre os efeitos estão: danos ao desenvolvimento do cérebro da criança, irritabilidade, transtornos de aprendizagem, distúrbios do sono e comportamento, entre outros.
Até os 6 anos as crianças também não devem ser expostas às telas. Para o desenvolvimento saudável das crianças até os 6 anos é preciso que elas tenham o maior contato possível com o mundo real, analógico, sobretudo com práticas ao ar livre em contato com a natureza. Nessa faixa etária o uso de telas pode promover déficit de motricidade, sobrepeso, problemas de postura, miopia, problemas na fala e de concentração, hiperatividade corporal, inquietação e comportamento agressivo.

Na fase dos 6 aos 9 anos a recomendação dos especialistas é ainda evitar o uso de telas. Não sendo possível, a exposição à TV deve ser limitada a 45 minutos por dia e no máximo 5 horas por semana. Nada de celular por enquanto! O adulto precisa acompanhar e mediar a relação da criança com os conteúdos orientando-a sobre o que é ou não adequado para a sua idade.

Para as idades entre 10 e 13 anos os autores recomendam: não ter conta própria em redes sociais, incluindo WhatsApp; não possuir smartphone, celular ou computador próprio; e não ter nenhum aparelho próprio com tela no quarto da criança.

Há pais e educadores que acreditam que as crianças deveriam ser estimuladas porque nasceram numa “era tecnológica”. Contudo, essa concepção é equivocada. Apesar de dominarem os comandos, as crianças não tem capacidade de avaliar os prós e contras das ofertas da internet.

Para quem quer olhar para sua relação com o celular com mais atenção e proteger as crianças, pode seguir as recomendações da Associação dos Médicos de Viena:

  • Telefonar o mínimo possível e fazer ligações as mais breves possíveis
  •  Crianças menores de 8 anos não deveriam usar celulares ou telefones sem fio. Dos 8 aos 16 anos só em caso de emergência
  • Prefira usar internet via cabo e o mínimo possível a conexão wi-fi
  • Não deixe o celular ligado junto ao corpo
  • Dê preferência à função viva-voz e aos fones de ouvido
  • Fique off-line e ative o modo avião sempre que possível
  • Use apenas aplicativos essenciais e desative os serviços em 2º plano

Compartilho também dicas de especialistas que vem dando certo para muitas pessoas, inclusive para mim:

  • Não estar ao celular quando estiver com crianças, exceto quando estritamente necessário
  • Esteja sempre com um livro para você e para suas crianças
  • Desative as notificações do celular

Não podemos naturalizar o uso do celular pelas crianças como se fosse algo normal. Celular não é brinquedo, muito menos inofensivo. O celular captura a infância das nossas crianças e as inserem precocemente na grande engrenagem do sistema capitalista. Se cruzarmos os braços e continuarmos ignorando a gravidade desse problema, estaremos sendo cúmplices da “Fábrica de Cretinos Digitais”, título do Livro do Neurocientista Michel Desmurget, Diretor do Instituto de Saúde da França.

Nossas crianças precisam experimentar o tempo livre sem telas, pois é nele que a imaginação e a criatividade fluem. Também precisamos permitir que elas se frustrem, pois a frustração lhes dará maturidade.

É necessário uma ampla tomada de consciência de que essa epidemia é uma questão de saúde pública. Precisamos urgente de um amplo pacto social entre Famílias, Escolas, Sociedade, Governos, Legislativo, Judiciário e Ministério Público para enfrentarmos essa epidemia. Todos por uma infância livre de telas. Espero ansiosamente pelo dia em que usar celular em determinadas situações seja considerado um ato tão repugnante e mal educado como o é o ato de fumar em público.

 

Publicado em 09/05/22

Foto: Pixabay