Educadores indígenas refletem sobre a criança e o consumo
Saem as frutas, a batata doce, o peixe, o feijão de corda, o beiju e os mingaus de milho e de tapioca… Entram em cena os salgadinhos, o macarrão instantâneo, os biscoitos e o refrigerante no cardápio de diversos povos indígenas do Brasil. A má alimentação extrapola os centros urbanos e os produtos industrializados, de baixa qualidade nutricional, e com muita gordura e açúcar, muito anunciados nos meios de comunicação, marcam presença também nas aldeias da Bahia, como constatou a professora Cristhiane Ferreguett.
Integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc, Cristhiane Ferreguett ministra aulas na cidade baiana de Teixeira de Freitas, dentro do curso de Licenciatura Intercultural de Educação Escolar Indígena, LICEEI, da Universidade do Estado da Bahia, Uneb. A criação do curso foi uma reivindicação dos próprios educadores indígenas que buscam formas de preservar sua cultura por meio de uma educação escolar específica, diferenciada, intercultural e comunitária.
O curso é realizado em módulos e teve início em 2009 com 94 alunos. Os primeiros módulos contaram com disciplinas gerais ministradas para todo o grupo e, posteriormente, eles se dividiram em eixos, por afinidades com as áreas. Os eixos de estudo são Pedagogia, Artes e Linguagens, Ciências da Natureza e Ciências Humanas. Nos eixos Pedagogia e Linguagens, Cristhiane Ferreguett trabalhou com as mudanças nos hábitos alimentares dos povos indígenas, o consumismo infantil e a influência da mídia, dentre outros temas. “As disciplinas possibilitam discutir os vários gêneros discursivos que circulam em nosso meio social. Analisamos o discurso presente em jornais, reportagens, anúncios publicitários e músicas. Nessa perspectiva aproveitamos para refletir sobre a publicidade direcionada para as crianças”, explica Ferreguett. Além de textos, entrevistas e reportagens sobre o tema consumismo na infância, dois documentários deram embasamento para as discussões do grupo: Criança, a Alma do Negócio e Muito Além do Peso, ambos da Maria Farinha Filmes.
O documentário Muito Além do Peso retrata o problema da obesidade infantil e mostra como os alimentos industrializados chegam a todos os cantos do país. Em regiões muito distantes, de difícil acesso, barcos funcionam como supermercados e vendem leite em pó, biscoitos e chocolate para os povos ribeirinhos e indígenas do norte do Brasil. Os povos da Bahia também vivem situação semelhante e, expostas aos apelos da mídia, as crianças indígenas também querem salgadinhos e chocolate, abrindo mão dos alimentos típicos de sua cultura.
Alimentação
Por meio de pesquisas e debates entre seus alunos, Cristhiane levantou informações que retratam as mudanças nos hábitos alimentares de povos indígenas espalhados por vários pontos da Bahia, além do poder dos apelos da mídia e da publicidade sobre crianças e adultos nas aldeias.
A aluna Ana Paula Silva do Amaral, do povo Tupinambá, do município de Olivença, conta que na comunidade dela as crianças consomem macarrão instantâneo, chips, salsicha, refrigerante, achocolatado, biscoito recheado e suco em pó. Ela acredita que as crianças são muito influenciadas pela publicidade, tanto no consumo de alimentos industrializados, quanto na compra de brinquedos, celulares e maquiagens.
Juliana da Conceição Santana, do povo Pataxó, conta que a energia elétrica chegou em sua aldeia há 16 anos e junto com ela veio “a TV, a internet, e a febre das caixinhas de som e celulares”. Ela acredita que é possível frear ou reverter o processo. “Na aldeia, mesmo com essas novas tecnologias, ainda temos o privilégio do contato direto com a natureza”, analisa Juliana. A educadora indígena e aluna do curso Cirila Santos Gonçalves, do povo Kaimbém, diz que irá propor um projeto pedagógico para discutir o tema consumo consciente entre os alunos e suas famílias.
Obesidade
Maria Lúcia Silva, do povo Pankararé, afirma na sua aldeia há crianças com problemas de obesidade devido à má alimentação. Ela acredita que a escola deve dar o exemplo e ofertar alimentos saudáveis nas merendas destinadas aos alunos e o educador também deve orientar as crianças e os pais. A professora pretende fazer seminários para discutir a preservação da cultura do seu povo, além de conscientizar sobre consumo responsável.
O professor indígena João da Cruz Gomes, do povo Kantaruré, também observa a presença da obesidade infantil na sua aldeia e o consumo exagerado de produtos industrializados. Ele afirma que pretende executar um projeto com o objetivo de conscientizar e reeducar a comunidade.
Para Emanoel Brás de Almeida, do povo Pataxó, “a publicidade tem um papel de muita influência, visto que as crianças e adolescentes veem esses produtos sendo divulgados na mídia e isso faz com eles queiram consumi-los. “É como se esses produtos fossem saudáveis, mas, por trás disso há componentes perigosos que eles desconhecem”, diz se referindo a gordura, açúcar e outros ingredientes dos industrializados.
A disciplina Ludopedagogia indígena, ministrada no eixo Pedagogia, contou com a ajuda do aluno e professor Pedro José Neves do Espírito Santo, da aldeia de Coroa Vermelha, que fez um levantamento sobre brinquedos e brincadeiras dos povos indígenas. Em sua apresentação para todo o grupo sobre as brincadeiras tradicionais do povo Pataxó, ele destacou a necessidade da valorização do trabalho e da arte do seu povo. Ele frisou a importância da retomada das brincadeiras típicas dos povos indígenas, que promovem uma participação mais dinâmica e ativa das crianças, contra o sedentarismo que hoje atinge a infância.
Oficinas nas aldeias
Cristhiane Ferreguett conta que, antes de terem contato com os conteúdos das disciplinas que tratam da questão do consumismo e que foram ministradas por ela, muitos professores indígenas não tinham refletido sobre este problema e sobre as mudanças culturais provocadas pelo marketing. Além disso, muitos dizem que nunca tinham pensado também na relação consumo e degradação do meio ambiente. “A maioria dos professores indígenas com os quais trabalhei afirmam que vão discutir o assunto com a sua comunidade e irão implementar ações para reverter este processo. Muito farão oficinas nas aldeias para repassar as informações do curso”, comemora.
Com o trabalho com os educadores indígenas, Cristhiane espera contribuir para a reflexão sobre a perda da identidade cultural e alimentar dos povos e dos prejuízos da adoção deste outro tipo de dieta, principalmente pensando na importância de se proteger a criança e o adolescente dos apelos do consumo, dentro e fora das aldeias.
Saiba Mais:
O Licenciatura Intercultural de Educação Escolar Indígena, LICEEI, da Universidade do Estado da Bahia, Uneb, é um curso específico e modular, destinado à formação em nível superior de professores de escolas indígenas. O LICEEI beneficia vários povos indígenas do estado da Bahia como os Kaimbé, Kantaruré, Kiriri, Pankararé, Tumbalalá, Tuxá, Xucuru-Kariri, Pankaru Pataxó, Pataxó Hãhãhãe e Tupinambá. O povo Pataxó, por exemplo, possui cerca de 20 aldeias espalhadas por Porto Seguro, Santa Cruz de Cabrália, Prado e Itamaraju.