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Vamos “desplastificar” a brincadeira?

Vamos “desplastificar” a brincadeira?

Por Silvia Adrião – Pedagoga e integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo

Na escola, podemos promover um ambiente rico de aprendizagem e exploração para as crianças longe de brinquedos industrializados, plásticos e que reproduzem personagens comerciais. Acha difícil? Acompanhe-me nesta reflexão e veja como podemos tornar as escolas um verdadeiro espaço de investigação e criação, com novas perspectivas.

​A escola é um espaço potencialmente estimulante para a educação estética e ética da criança. Para isso é preciso que os professores façam escolhas que reflitam a intencionalidade educativa que está por trás de cada objeto colocado na sala de aula e sobre as paredes. Uma das possíveis formas de contemplarmos a dimensão estética é através do encontro das crianças com o belo e o natural, quando estimulamos que brinquem, observem, sintam e convivam com a natureza e todo seu potencial formador. A dimensão ética é desenvolvida, dentre outras maneiras, quando nos perguntamos qual é o impacto que o material, brinquedo ou objeto que dispomos ao alcance da criança causa ao planeta.

​A natureza oferece uma diversidade de experiências, sensações e aprendizagens que serão fundamentais para descobrir o mundo, a ciência, a beleza e a ecologia. Nela, podemos encontrar um currículo inteiro: sons, cores, cheiros, sabores, imagens, formas…. Tudo está lá para ser contemplado, vivido e explorado pela criança. Este contato com todas estas vertentes, aliado às experiências do contexto em que a criança vive, seja na cidade, no campo, no litoral ou na floresta, formarão um lastro de conhecimento estético que educam os sentidos e compõem um repertório individual e compartilhado entre os seus. Que repertório queremos ofertar para nossas crianças? Salas decoradas com personagens comerciais, muitas vezes estereotipados, feitos pelos adultos, sem nenhuma autoria da criança ou pouca onde ela apenas pinta algo pronto? Elementos preparados com materiais plásticos ou E.V.A. (Etil, Vinil e Acetato) que são derivados de petróleo e que causam grande impacto para o meio ambiente em sua produção? Tenho certeza de que não.

Hoje, podemos avançar a reflexão e prepararmos espaços que comuniquem uma visão de criança e de infância baseada no respeito, na potência e na criatividade. Produções e provocações que ajudem a criança a se sentir pertencente, que expressem um caminho autoral de conquistas, sem estereótipos (bichos ou bonequinhos) que pouco contam sobre o mundo real e sem os famosos personagens que colonizam nosso imaginário de adulto e que reproduzimos porque achamos “bonitinho”, “as crianças vão gostar”. Sim, talvez gostem, mas não precisam estar na escola. Os personagens comerciais já chegarão até elas por inúmeros caminhos, provocando uma cadeia de consumo exacerbado e desnecessário. A escola deve ser um espaço de contraponto e de estupores. Um espaço que promove o contato com novas referências sensoriais e estéticas, que não chegariam até a criança se não fossem por meio da escola (não me canso de dizer isso) ou que estão ao alcance de todos, como o céu, o vento e a natureza como um todo, porém, são deixadas de canto por não pertencerem ao mundo do consumo ou do currículo convencional, mas são potentes ferramentas de aprendizagem, encantamento e exploração. Costumo brincar dizendo que “cada vez que entregamos um desenho pronto para uma criança pintar, uma fada da criatividade morre. ”

​Precisamos acreditar no potencial criativo da criança e mudar a visão de que ela não é capaz, de que ela não pode, mudando, assim, a visão de infância. Esse deslocamento de visão de criança implica num deslocamento também de visão de escola e de currículo. Cada contexto escolar deve ser diferenciado, valorizando suas peculiaridades e ampliando as referências ao compartilhar saberes e fazeres de outros lugares. Deve tornar o cotidiano mais autoral, abrindo espaço para o fazer manual, criativo, inusitado. Precisamos de um currículo, uma vivência escolar que fomente a investigação, a pesquisa, a subjetividade e a descoberta.

​Então, o que coloco no lugar dos brinquedos de plástico, da folhinha desenhada com personagens, muitas vezes importados, ou do mural de E.V.A?

​Podemos substituí-los pelo trabalho com os “Campos de Experiências” que conversam entre si e abrir nossa “escuta” para o vento, para a sombra, para as plantas, para as cores do céu, para a água, para a textura das folhas, das pedras, para a areia e para a terra… e a natureza como uma grande fonte de consulta e inspiração.

​Também podemos produzir, buscar e selecionar materiais que vão conversar com esta escuta como os chamados “materiais não estruturados”. Esses materiais permitem a mais rica experiência de criatividade, autoria e abrem margem para inúmeras descobertas e diversificam a brincadeira. A natureza e os materiais não estruturados são fortes aliados nesta nova forma de organizar os espaços e buscar novos sentidos para o fazer escolar. Estimulam a capacidade de inovar, a resolução de problemas, promovem a autoestima e o senso de pertencimento. O E.V.A. e o plástico limitam a experiência sensorial e estética, são materiais artificiais que “artificializam” a vida dentro da escola. Se a escola é um lugar para se descobrir o mundo, precisamos de elementos mais verdadeiros e que valorizem tal experiência, lembrando sempre da importância da educação estética e ética.

​Vamos “desplastificar” a brincadeira? Além de todo acervo de aprendizagens que a natureza oferece, recorrer aos materiais não estruturados nos permite criar inúmeras propostas com diferentes intencionalidades. São materiais como rolos de papelão de diferentes tamanhos e espessuras, caixas grandes, médias e pequenas, caixas de ovos, carretéis e cones de linha, tecidos de diferentes cores e texturas, madeiras de diversos tamanhos e cortes (palitos, plaquinhas ou círculos). Utensílios como escovas variadas, colheres, potes, funil, botões grandes, pincéis, buchas vegetais, também oferecem ricas possibilidades. Enfim, as alternativas são muitas, principalmente no universo do reaproveitamento de itens domésticos e até mesmo industriais. Estes materiais podem tornar o ambiente escolar lúdico, convidativo e nunca perderão o encanto, já que abrem as janelas da criatividade e, geralmente, são livres de publicidade. As crianças são potencialmente inventivas e inovadoras. Vamos inovar como elas?

 

Publicado em 28 de fevereiro de 2021

Foto: Pixabay

 

Saiba mais sobre a colunista Silvia Adrião:

Sou pedagoga, especialista em Construtivismo/Educação e Mestre em Sociologia da Educação.Tenho mais de 20 anos de experiência no trabalho com crianças e na defesa da cultura infantil. Sou pesquisadora e apaixonada por Literatura infantil e pela abordagem de ensino Italiana de Reggio Emilia. Encontrei na Rebrinc um espaço para ampliar o debate e o alcance das reflexões sobre infância.

 

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