Redução da maioridade penal e o sequestro da infância e da adolescência
Por Tamara Amoroso Gonçalves* – Advogada graduada pela PUC/SP e mestra em Direitos Humanos pela USP
Recentemente, a Comissão de Constituição e Justiça, CCJ, responsável por garantir o controle prévio de constitucionalidade – assegurar que as normas aprovadas pelo parlamento estejam de acordo com a Constituição Federal – rasgou o texto constitucional e sequestrou a infância e adolescência brasileiras. Em poucas palavras, aprovou como constitucional e legal o debate sobre a redução da maioridade penal.
O parágrafo 4o, do artigo 60 da Constituição Federal, indica as matérias que não podem ser objeto de deliberação com o objetivo de alterar a Constituição. É praticamente uma proteção da Constituição contra o sistema político, a dizer que “certos temas são imexíveis”. No inciso IV, expressamente encontramos “os direitos e garantias individuais”. Esses direitos encontram-se espalhados em todo o texto constitucional e são amplificados pela ratificação pelo Brasil de tratados internacionais de direitos humanos, como a própria Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança. No caso de crianças e adolescentes, estes direitos concentram-se nos artigos 227 a 230. O artigo 228 explicitamente determina que são inimputáveis os menores de 18 anos de idade. Inimputáveis não é sinônimo de impunes, na medida em que esses jovens respondem pelos atos que cometeram nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente, podendo inclusive ser punidos com privação de liberdade.
Há tempos que essa proposta ronda o Congresso Nacional, travestida das mais diversas formas. Mas somente agora, com um Congresso tão conservador quanto o de 1964, é que a união de algumas bancadas resolveu mostrar a que veio. Uma aliança entre a “bancada da bala”, evangélicos e ruralistas impõe a sua força com a aprovação dessa medida e deixa bem claro para a sociedade que não respeita nem mesmo os limites constitucionais: eles podem fazer o que bem quiserem. E estamos concluindo apenas o terceiro mês do mandato. O que mais virá pela frente?
Argumentos contra a redução da maioridade penal não faltam: o número de jovens que cometem crimes graves, contra a vida, é insignificante (menos de 1%). Aliás, menos de 1% da violência urbana é causada por esses jovens. Em contrapartida, o Brasil é o segundo país do mundo em número absoluto de homicídios de adolescentes (atrás apenas da Nigéria), com o assassinato de 33 mil jovens de 12 a 18, somente no período de 2006 a 2012 (UNICEF).
A proposta aprovada pela Câmara pretende reforçar as garras do direito penal seletivo e violento e encarcerar cada vez mais e mais cedo pretos, pardos e pobres. Só quem se enquadra nessas categorias recebe o título de “jovem infrator” e ameaça a sociedade. Não é novidade que as unidades de internação repetem o esquema do sistema prisional e atuam de forma seletiva para compor a sua população. Mesmo que tenham cometido atos infracionais, jovens de classe média e alta não chegam à Fundação Casa e a sociedade os vê de forma também diferente. O que os diferencia são as oportunidades na vida. Para aqueles que ficam com uma vida toda de direitos negados, só resta mesmo a prisão. Segregar reforça a ilusão de conforto: como se não existisse o que não vemos, encarcerar jovens é promessa de solução mágica para que não tenhamos que lidar com o abandono social pelo qual somos todos responsáveis.
Sim, somos todos responsáveis por negar os direitos dessas crianças e adolescentes todos os dias. A Constituição determina que estes sujeitos devem ter seus direitos fundamentais assegurados com absoluta prioridade pela família, sociedade e Estado. Mas temos 571 mil crianças e adolescentes fora das escolas (IPEA). Porque não lutamos para incluí-las no sistema educacional? Por que não batalhamos pela melhoria da escola? Parece ser um caminho longo demais. Mas socorrer-se do direito penal para tentar reverter o problema social de abandono dessa parcela da sociedade é não apenas inconstitucional como inútil: não nos levará a ruas mais seguras. Desigualdade não se resolve com cadeia, especialmente com um sistema prisional brasileiro: seletivo e ineficiente. Menos de 8% dos crimes no Brasil são investigados e ainda assim nossas prisões estão abarrotadas de gente. Não se trata de se ter dó ou piedade dos “bandidos”, mas simplesmente de constatar a ineficiência dessa verdadeira máquina de processar vidas como se fossem apenas folhas de papel, gente que não importa. Deixamos toda uma parcela da sociedade desamparada e violamos seus direitos a torto e a direito, “para manter a paz”. Em troca, a desigualdade social se intensifica, sobram Amarildos e tantas outros que desaparecem antes mesmo de existirem.
O Brasil que defende a redução da maioridade penal ignora esses finais. Mais fácil esconder debaixo do tapete. Quem sabe encarcerando “toda essa gente” o problema deixe de existir. O problema é que há anos estamos seguindo nessa linha mas a sensação de insegurança urbana parece só crescer. Esquecemos que nossa cegueira é também seletiva. Vemos o que queremos e tentamos acreditar que a ampliação do espectro do direito penal vai nos salvar. Ledo engano de quem ainda acredita que a força pode tudo, inclusive legislar como se Constituição não existisse.
Cláusulas pétreas existem para serem respeitadas, direitos para saírem do papel. Enquanto não entendermos que o problema é social e é de todos nós, não vamos a lugar algum, com ou sem redução da maioridade penal.
Texto publicado também no Jornal O Diário São Paulo – 16/04/2015
* Saiba mais sobre a colunista Tamara Amoroso Gonçalves:
Olá, meu nome é Tamara. Também estou na Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc. Moro atualmente em Montreal, no Canadá. Sou advogada e mestra em Direitos Humanos. Desde o início da faculdade de direito me envolvi com temáticas relacionadas a direitos humanos e me apaixonei pelo direito da criança e do adolescente. Em meu primeiro estágio contribuí para a defesa técnica de adolescentes em conflito com a lei e tive contato com debates envolvendo questões de gênero. Nesse processo, descobri a importância de se repensar estereótipos e marcações de gênero desde a primeira infância. Em meu mestrado, focado em casos de violações de direitos das mulheres apresentadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ficou evidente a conexão entre ambos os temas: muitos dos casos de violações de direitos das mulheres contavam na verdade histórias de violências contra meninas. A partir de minha experiência no Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, compreendi melhor a necessidade de discutirmos na sociedade brasileira as relações entre consumo, infância e gênero, repensando os padrões consumistas e de gênero que vêm sendo impostos a todos e que limitam o desenvolvimento de uma sociedade mais igualitária e feliz.
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