Publicidade infantil: por que a resolução 163 ainda não saiu do papel?
Por Desirée Ruas – Jornalista, especialista em Educação Ambiental e Sustentabilidade e integrante da Rebrinc
Um ano após a publicação da resolução que proibiu a publicidade infantil no Brasil, a dúvida que perdura é: por que a criança continua sendo alvo de mensagens comerciais nos diversos meios de comunicação? O questionamento é feito por todos aqueles que se incomodam com os anúncios feitos especialmente para as crianças, incentivando-as a valores e estilos de vida consumistas nada saudáveis e sustentáveis.
Comerciais de salgadinhos, biscoitos, roupas ou brinquedos – na televisão, nas revistas em quadrinhos e em todos os espaços onde há anúncios dirigidos a menores de 12 anos – são um tipo de publicidade considerada abusiva e, portanto, ilegal, pois a criança não tem condições de avaliar criticamente tal conteúdo. E o poder da comunicação mercadológica na vida da criança é hoje uma preocupação real associada ao aumento da influência da alimentação não saudável e índices crescentes de obesidade, mudança de valores, materialismo, erotização precoce e estresse familiar, dentre outros.
Na tentativa de mudar tal realidade, o dia 4 de abril de 2014 foi uma data importante para todos aqueles que são contrários à publicidade infantil e sabem do seu impacto sobre as crianças. Pais, mães, educadores, profissionais de saúde e integrantes de movimentos em defesa da infância comemoraram a publicação da resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conanda, aprovada de forma unânime na plenária do dia 13 de março do mesmo ano.
Depois da comemoração, veio a dúvida. Por que tudo continua como era antes? Vale lembrar que a divulgação de produtos infantis não é proibida e sim a mensagem criada especificamente para a criança. A partir de agora, é hora dos publicitários experimentarem novas formas de comunicar a existência dos produtos, sempre se dirigindo aos pais e adultos e não às crianças.
Quem tem filhos ou convive com crianças sabe que não basta dizer “não”. Os anúncios e seu incrível poder de convencimento “minam os esforços de pais e educadores”, como resume a escritora Susan Linn, em seu livro “Crianças do Consumo – A Infância Roubada”. As famílias, por mais que se esforcem, não têm instrumentos para competir com o discurso da publicidade e da mídia, de uma forma geral, direcionada à criança. Muitos “nãos” são ditos diariamente, várias vezes por dia, mas o bombardeio que vem de todos os lados dificulta a educação que pais e mães tentam dar a seus filhos e interfere na forma como as crianças entendem o mundo. Quem defende a infância de forma ampla sabe que educar filhos é também educar para o consumo. No processo de ensino e aprendizagem, o discurso do consumismo e do apelo feito por marcas e produtos se utiliza da vulnerabilidade das crianças, se sobrepondo ao esforço das famílias. E por que o Estado tem que interferir nessa questão? Tal interferência é necessária porque é responsabilidade de todos – famílias, Estado e sociedade – assegurar os direitos e proteger as crianças e os adolescentes, como define o artigo 227 da Constituição Federal, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente, lembrando também da regra da prioridade absoluta.
A autorregulamentação, defendida pelas empresas de comunicação e agências de publicidade, já se mostrou totalmente ineficiente, assim como nos casos da publicidade de cerveja. O mercado, formado por fabricantes de brinquedos, indústria alimentícia, produtos licenciados estampados por super heróis e outros personagens conhecidos da garotada, canais de comunicação e internet, que sempre teve o público infantil como a sua galinha dos ovos de ouro, diz ter sido surpreendido com a proibição. Os principais anunciantes do país divulgaram nota afirmando não reconhecer a legitimidade do Conanda para legislar sobre o tema.
Mas a resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conanda, não surgiu por acaso. Primeiro, porque desde 1990, a Lei 8.078 que define o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 37, já estabelece que é abusiva e portanto ilegal a publicidade que “se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança”. Segundo: há em tramitação vários projetos que tratam do tema como reposta a demandas da sociedade. O primeiro projeto sobre o assunto na Câmara dos Deputados, e que ainda está em tramitação, foi proposto em 2001. Em terceiro lugar, porque a resolução é resultado de um extenso trabalho do Conanda, órgão ligado à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, que sempre recebeu denúncias de abusos e violações de direitos, o que inclui a publicidade dirigida às crianças. O Conanda trata, dentre outros temas ligados à infância e à adolescência como direito à educação, saúde e combate à exploração sexual, da questão da publicidade dirigida às crianças. E o assunto também esteve na pauta da 9ª Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, realizada em Brasília em 2012, que contou com a aprovação de uma moção contra a publicidade infantil.
A questão da proteção da infância ao caráter abusivo da publicidade se insere no Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 2011 – 2020 no objetivo estratégico 3.8 que busca “aperfeiçoar instrumentos de proteção e defesa de crianças e adolescentes para enfrentamento das ameaças ou violações de direitos facilitadas pelas tecnologias de informação e comunicação”.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente é um colegiado paritário entre a sociedade civil e o governo. Ele foi criado na lógica da Constituição Federal de 1988 para a aprovação e criação de políticas públicas e normativas com a função de controlar o Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente.
O Conanda, ao contrário de outros conselhos nacionais, é um órgão deliberativo, ou seja, tem o papel de “elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução” (Lei n. 8.242 de 12 de outubro de 1991). Sendo assim, o Conanda não só fez seu trabalho como deu um importante salto contribuindo para a delimitação das balizas normativas para os vários projetos em tramitação. Reafirmou o que já determina o Código de Defesa do Consumidor e ainda definiu de que maneira a publicidade voltada para a criança se faz abusiva. Também apresenta princípios gerais que devem nortear a publicidade dirigida ao adolescente.
A resolução 163 – assim como outras resoluções de conselhos como o Contran (Conselho Nacional de Trânsito) e o Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) – é um ato normativo com força de lei, explica Pedro Affonso Hartung, advogado do Instituto Alana e também conselheiro do Conanda. De acordo com a resolução, é considerado abusivo o direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço que se utiliza de elementos como linguagem infantil, efeitos especiais, personagens ou celebridades com apelo ao público infantil, promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis, dentre outros.
O advogado Pedro Hartung esclarece que, a partir da publicação da resolução, toda publicidade dirigida à criança que se utiliza dos recursos explicitados no texto da 163 passou a ser proibida. Mas se está proibida, por que tudo continua como era antes da resolução? Pedro explica que “a resolução inaugurou um debate político e jurídico que vai depender também da pressão da sociedade. A resolução não é uma fórmula mágica. E cada caso deverá ser analisado a partir de agora. Com a resolução 163 nós ganhamos diretrizes claras para se avaliar a comunicação mercadológica”. Ele reforça que o Conanda não criou uma proibição e sim reafirmou o que já estava previsto no artigo 37 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor que considera ilegal a publicidade que se ‘aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança’”. No texto da resolução, a comunicação mercadológica, que não pode mais ser dirigida para o público de até 12 anos, abrange anúncios impressos, comerciais televisivos, spots de rádio, banners e páginas na internet, embalagens, promoções, merchandising, ações por meio de shows e apresentações e disposição de produtos em pontos de venda. “Ainda temos publicidade infantil no Brasil, mesmo após a publicação da resolução 163, porque precisamos sensibilizar a sociedade e o Judiciário, além da resistência do mercado e da necessidade de fiscalização e punição”, explica Hartung.
Acostumada com o bombardeio publicitário sobre o público infantil, a sociedade está ainda tomando conhecimento da resolução e a mobilização feita por movimentos como o Infância Livre de Consumismo e a Rede Brasileira Infância e Consumo são fundamentais para incentivar as pessoas a refletir sobre o tema, denunciar os abusos e proteger as crianças da comunicação mercadológica da forma como foi feita até hoje. As denúncias sobre a manutenção de publicidade dirigida à criança podem ser feitas aos órgãos que compõem o Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente, como os Conselhos Tutelares e o Ministério Público, e ao Sistema Nacional de Proteção ao Consumidor, como os Procons.
Para o advogado Gabriel Tomasete, presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-RO e também integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo, “inicialmente, é preciso que um número maior de pais compreenda o tema e se mobilize, deixando de comprar produtos de fabricantes que manipulam a criança. Outra forma de pressão é rebater de forma veemente as manifestações daqueles que, movidos por interesses financeiros, defendem e distorcem essa discussão. E, se nada for suficiente, será preciso levar o assunto para a apreciação da Justiça.”
Saiba mais sobre a resolução 163 no site do Alana.
Conheça o projeto Prioridade Absoluta, iniciativa do Instituto Alana, também trata do tema Mídia e Comunicação.
Publicado originalmente no blog do Movimento Infância Livre de Consumismo