O que ensinam os personagens infantis?
Por Caio Fábio Sampaio Porto – Graduando em Ciências Sociais pela UnB
Eu era uma criança estranha. Enchi o saco da minha mãe por anos, até que consegui que ela me fizesse a comida favorita do personagem principal do desenho animado que eu mais gostava. E foi assim que, aos quatro anos, eu comi espinafre pela primeira vez, cheio de alegria. Eu adorava o Popeye. Por pouco, aliás, não me tornei militar como ele.
Depois tive uma fase Maurício de Sousa: eu, criança insuportável que era, só parava de correr e fazer barulho se me dessem uma pilha de revistas da Turma da Mônica. Tinha especial simpatia pelo Cebolinha, mas lia qualquer gibi deles que caísse na minha mão. Melancia é, até hoje, minha fruta favorita. Devo essa à Magali. É difícil encontrar alguém da minha geração que não tenha pelo menos pedido para comprar as maçãs da Mônica, mesmo que não as tenha comido. Pena que eles agora vendem kibes, nuggets ou qualquer coisa que pague o suficiente…
Enfim. O tempo foi passando e, com a prosperidade da classe média do período Lula, eu passei a ter televisão a cabo em casa – com uma infinidade de desenhos muito mais atraentes. Muita coisa mudou a partir daí: minhas “necessidades” de consumo, gostos, interesses e peso. Continuei gostando de melancia e de espinafre, mas agora eu precisava comprar o McLanche que vinha com o boneco que todos os meus amiguinhos tinham. Eu ainda gostava de gibis, mas também queria as cartas, brinquedos, peões brilhantes e roupas especiais que os intervalos dos canais infantis de televisão a cabo me ofereciam dia e noite.
Até a internet, embrionária no Brasil quando da minha primeira infância, foi uma experiência totalmente diversa da que os nascidos hoje têm com ela. Internet, para mim, era um lugar onde minha mãe digitava umas palavras que faziam aparecer na tela, como por mágica, infinitas tirinhas do Cascão e do Chico Bento. Raramente eu pedia para usá-la, até porque preferia (e continuo preferindo até hoje) as versões impressas das histórias, aquelas que a gente pode levar pra qualquer lugar, ler até quando falta energia e ainda sentir o cheiro maravilhoso do papel de revistinha.
Depois da experiência que eu tive de exposição aos canais pagos, tive um surto de consumo e de aumento das minhas horas acessando a internet – em vez do site da Mônica, passei a frequentar o do Cartoon Network e da Nickelodeon, ambos devidamente repletos de propagandas que me faziam ter certeza de que tudo que eu precisava na minha vida era uma pista de carrinhos de brinquedo ou o baralho original do jogo que o personagem do desenho usava.
Até que um dia, quando eu estava mexendo no computador da minha avó, faltou luz por umas horas. Era uma tarde de sábado (ou domingo, não me lembro) e todos estavam dormindo. Logo, o tédio imperava. Sem computador, fui caçar o que fazer. Fui atrás dos livros da prateleira da minha avó, mas os coloridos e divertidos do Daniel Azulay estavam numa prateleira muito alta. Tinha que me virar com os livros chatos, sem figuras, era o jeito. Depois de uma análise criteriosa, quer dizer, tão criteriosa quanto pode ser a análise de uma criança de uns nove anos pode ser, acabei pegando dois livros que pareciam interessantes: Dona Guidinha do Pôço (com o acento mesmo, pra você ter ideia da idade do livro) e Revolução dos Bichos. Como eu gostava de bichinhos, como o Mingau, o Horácio, o Bidu e o Chauvinista da Turma da Mônica, resolvi ler o livro que tinha uns porquinhos e outros animais de fazenda na capa.
E foi assim que eu li meu primeiro livro sério. Antes que minha família acordasse da sesta, eu já tinha devorado a bela obra de George Orwell. Depois daquele dia eu nunca mais fui o mesmo, pois foi apenas quando o destino me desconectou, à força, da internet que eu conheci aquela que viria a ser a maior paixão da minha vida: a leitura.
É interessante perceber a importância que os produtos voltados à criança tiveram nesse processo, uma vez que, enquanto a Turma da Mônica (que, à época, ainda guardava algum respeito pela formação de seus pequeninos leitores) me incentivou a comer melancia e maçã e a ler Orwell, mesmo que indiretamente, os produtos dos canais pagos de televisão apenas conseguiram me ensinar a consumir, nada mais.
Isso ajuda a explicar o que se pode observar no comportamento das crianças de hoje. Expostas desde a mais tenra idade a produtos que, embora inescrupulosamente travestidos de educativos, ensinam apenas a cultura do consumo, as crianças se tornam cada vez mais dependentes daquilo que consomem e dos produtos que lhes permitem consumir o dito “entretenimento” de maneira mais efetiva.
Daí o culto ao tablet e ao smartphone, que aproxima, numa relação quase que pessoal, o consumidor de seu produto. A criança é a consumidora dos sonhos de qualquer empresário, devido à sua incapacidade de medir custos e benefícios e pela forma inocentemente insana com que deseja qualquer produto que carregue a marca de seu personagem favorito. Já o produto pode (e costuma) ser o desenho animado patético que estiver na moda e que for mais hábil em convencer os pequeninos de que aquilo que eles consomem tão apaixonadamente é algo mais do que a forma que a indústria do entretenimento encontrou de extrair dinheiro fácil dos pais das crianças e de treiná-las para manter seu comportamento impulsivo e consumista pelo máximo de tempo possível.
Ainda bem que faltou energia no dia da casa da minha avó. As crianças precisam saber que há vida fora das telas que as aprisionam. Quando contaremos para elas?
Imagem: reprodução
* Saiba mais sobre o colunista Caio Sampaio
Um cara que pensava diferente em um Colégio Militar, incapaz de dizer amém a qualquer coisa. Uma criança que mal ganhava brinquedos e a quem nunca ninguém negou um livro, por mais difícil que ele fosse. Um menino que não podia ver uma banca de revista e já queria levar ela toda pra casa. Quando sua mãe o queria quieto, comprava pra ele uma pilha de revistinhas, não um eletrônico qualquer. Uma pessoa que aos nove anos leu por puro acaso o seu primeiro livro sério, Revolução dos Bichos, fazendo surgir um vício que nunca abandonou. Criança inconveniente que era, logo desenvolveu um grande amor por História, só piorando a partir daí. Hoje cursa Ciências Sociais na Universidade de Brasília, onde pode ser chato à vontade.
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