O limite da (i)legalidade da mensagem publicitária voltada para as crianças
Raquel Gutierrez de Azevedo* – Advogada, graduada em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Pós-Graduanda em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Instituição Toledo de Ensino (ITE) e integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo.
O setor publicitário está sempre em busca de novos clientes, para acompanhar a demanda de novos produtos, com meios cada vez mais sutis e sofisticados. O público infantil é um dos mais lucrativos e visados, o que torna comum publicidade nos mais variados meios de comunicação com fala direcionada às crianças, independentemente de o produto anunciado ser produzido para esta faixa etária.
A atividade publicitária por si só é essencial para o desenvolvimento do comércio e da livre concorrência, sem excluir sua importância em apresentar e diferenciar produtos aos consumidores, de maneira a auxiliar na escolha. No entanto, suas possibilidades não são absolutas e encontram limites explícitos em lei. Uma das maneiras de ultrapassar esses limites é extrapolar o seu papel informativo a tal ponto que leve o consumidor a acreditar que necessita de algo, sem compreender o quanto está sendo induzido e influenciado.
O Código de Defesa do Consumidor traz os limites para a prática publicitária, sendo um deles a proibição de publicidade abusiva, que pode ser definida como aquela que se aproveita da ausência de discernimento infantil para anunciar um produto, marca, estilo de vida, ou incentivar o consumo. Para amparar o disposto acima, em abril de 2014 o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, CONANDA, publicou a resolução 163, indicando parâmetros para avaliar quais propagandas veiculadas pela mídia são abusivas ao público infantil, auxiliando na interpretação do dispositivo legal.
A resolução do CONANDA veio corroborar a ilegalidade já patente da publicidade infantil – pois crianças com até doze anos de idade não compreendem o caráter persuasivo da mensagem publicitária, sendo influenciadas em sua totalidade pelo anúncio – ao trazer parâmetros objetivos para a classificação de abusividade.
A indústria publicitária procura formas de reagir à maior atenção dada para anúncios de produtos – principalmente alimentos não saudáveis (como salgadinhos, refrigerantes, bolachas recheadas, leites prontos, entre outros), brinquedos que incitem violência, preconceito, dentre outros “valores” que atrapalham o seu desenvolvimento saudável – e se prepara para realizar o branding – identificação com o produto e seus valores – e se comunicar com seu público-alvo com maneiras mais sutis, alcançando êxito na venda não apenas do produto, mas do nome da marca e valores a ela ligados.
Surge a tendência de propagandas “educativas”, diferenciadas das técnicas tradicionais pois o produto não é diretamente anunciado, mas sim mascotes da marca são utilizados para irem até as escolas e fazerem palestras “positivas”, ensinando sobre meio ambiente, alimentação, saúde, colaboração, dentre outras coisas às crianças. Também é comum a distribuição de cartilhas e CDs “educativos” com personagens infantis. Há, ainda, a ideia de que a publicidade infantil de alimentos saudáveis – como maçãs, por exemplo – isentariam o anúncio e a marca da ilegalidade. Em resumo, vê-se a tendência de maquiar com práticas educativas a publicidade infantil e ilegal.
Somos levados a acreditar que nossas crianças estão sendo ensinadas a cuidar do meio ambiente, ter uma vida saudável e consumir alimentos nutritivos com os seus personagens favoritos, não havendo nada de ilegal ou prejudicial nessa prática. Nos enganam outra vez.
A mensagem levada às crianças, não importando o seu conteúdo, incorpora os valores de sua marca. Fomenta desejos de consumo pelos artigos vinculados ao personagem que lhes trouxe a mensagem e que poderiam não conhecer até o momento. Torna-se mais difícil para elas discernir o cunho mercadológico de uma mensagem que recebem na escola, e não em veículos comunicativos habituais. A abusividade do discernimento infantil, vedada pelo nosso Direito, é patente.
Muita atenção também deve ser dada aos produtos saudáveis anunciados diretamente ao público infantil, pois esses englobam muito mais do que o simples objetivo de aumentar o consumo de maçãs por crianças. Frisa-se que os anunciantes possuem uma linha de produção muito mais vasta, e a publicidade liberada para apenas alguns itens selecionados induz a criança a desejar outros artigos. Ou seja, o efeito é o mesmo.
Outro questionamento necessário é sobre como classificar um produto livre para a publicidade. Permitir que uma indústria já abusiva decida sobre o que fará bem, e como consequência pode ser anunciado sem qualquer limite, significa aumentar ainda mais a abusividade da publicidade infantil, afinal, vemos produtos não tão saudáveis serem rotulados como se o fossem.
Mensagens publicitárias voltadas às crianças são ilegais pelo ordenamento jurídico brasileiro pelo simples fato de não ocorrer a assimilação consciente do teor mercadológico que é inerente à propaganda. A mudança na forma com que a mensagem é passada às crianças não é capaz de transformar essa característica a ponto de trazê-la à legalidade. Na mesma esteira, a publicidade para crianças é proibida por si só, – não pelo produto anunciado, de forma diversa da publicidade para adultos – assim, o anúncio de uma maçã também seria ilegal e abusivo.
Diz-se que a proteção jurídica dada à crianças e adolescentes no Brasil é integral, prioritária e de responsabilidade solidária dos pais, responsáveis e sociedade, sendo necessário um trabalho conjunto para sua efetividade. Ignorar todos os malefícios causados pelo contato direto das crianças com o consumo em troca de algumas boas informações vai contra o conceito de proteção à infância, podendo trazer consigo prejuízos maiores do que benefícios, dando continuidade ao ciclo interminável de cativar pequenos consumidores desde o berço para torná-los fiéis a uma marca até a fase adulta.
Publicado em 09/02/2016
Imagem: Arquivo Rebrinc
* Saiba mais sobre a colunista Raquel Gutierrez.
Sou advogada e acabei de me formar. Tento acreditar que minha profissão é bem mais do que me cercar por papéis e processos. Me interesso por qualquer tema que envolva Direito de Crianças e Adolescentes, especialmente os que tratam de sociedade em rede e de consumo, adultização precoce e influência da mídia perante as crianças e seus padrões de comportamento – inclusive identidade de gênero. Espero ajudar na desconstrução dessa sociedade louca e individualista, tentando ao máximo dar prioridade absoluta e proteção integral às crianças e adolescentes, como concordamos em fazer ao promulgarmos nossa Constituição Federal.
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Texto feito especialmente para o site da Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc. Caso queira reproduzi-lo, pedimos que mencione a fonte e o autor, com link para o site. Ajude-nos a valorizar os autores e a divulgar o nosso trabalho pela infância.