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Infância e cuidado: filmes, livros e histórias da vida real

Infância e cuidado: filmes, livros e histórias da vida real

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Por Débora Figueiredo* – Graduada em Filosofia e mestranda em Psicologia

Diante de tantas prosas bem escritas, poemas marcantes e textos ativistas, fico um tanto sem graça de escrever sobre as manobras oportunistas a respeito da redução da maioridade penal. Tudo que eu penso parece ser repetitivo, mais do mesmo, mas as palavras são tudo o que me resta nessa luta de lápis contra revólveres.

Resolvi, então, contar uma história sobre infância, brilho nos olhos e oportunidades. Mas antes dela, gostaria de dizer que o que me fez lembrar dessa história foi uma postagem da belíssima Letícia Sabatella sobre o encontro com garotos que iam da Gávea à Rocinha. Veja nesse link o que aconteceu. Vale a pena ler.

Certo dia vi no Facebook a postagem de uma moça da minha cidade sobre uma situação que ela achou linda e resolveu compartilhar. A situação era a seguinte: ela estava no ônibus e acompanhou a conversa de um garoto com o motorista. Eles pareciam dois amigos de longa data, se é que isso é possível para um menino de menos de 10 anos. Acredito que sim. Ele, com chinelos gastos, roupas velhas e um sorriso iluminado, dizia: “Vim te mostrar meu caderno novo, tio”. [Por aqui nossos pais nos ensinam a chamar os mais velhos de tio e tia.] O motorista, orgulhoso, perguntou se ele tinha gostado do caderno. O garoto respondeu que sim e agradeceu pelo presente. Disse, inclusive, que a tia da escola tinha até dito que a letra dele no caderno estava bonita. O motorista, de sorriso largo, disse: “Olhe, menino, estude! Eu prometi e vou dar uma mochila pra você e vou cumprir, mas você tem que voltar aqui sempre e dizer como está indo na escola”. O garoto, ainda radiante, disse que sabia disso e ia fazer tudo direitinho, sim. Os dois se despediram e o pequeno saltou na parada seguinte.

Percebam que essa está longe de ser a história de um menino ligado a bens materiais e marcas caras. O foco está longe de ser o caderno, os lápis, a mochila. O foco está no que esses itens significam para aquela criança. O foco está no apoio do amigo, no incentivo ao estudo, no reconhecimento da professora. Como não lembrar da amizade entre o Zezé e o Portuga, de Meu Pé de Laranja Lima?

Como não lembrar também do filme brasileiro O Contador de Histórias? A cena final é linda! O contador de histórias da vida real estava ali mostrando que é possível ter a vida transformada pelo carinho e pela perseverança de um adulto amoroso, mesmo quando o crime chama, cutuca, tenta de todas as formas possíveis e imagináveis.

Para os mais religiosos, sugiro o filme da Irmã Dulce. Seguindo a mesma linha de alguém que acolhe, de alguém que tem paciência, de alguém que não desiste mesmo quando aquela criança ou aquele adolescente já não parece ter jeito. Aquela criança capaz de crescer e devolver todo o amor em forma de gratidão ao mundo.

Mas aí alguém pode argumentar que os estadunidenses é que são certos. Jamais acolheriam um “vagabundo”. Sugiro outro filme baseado em fatos reais chamado Um sonho possível (The Blind Side), com a belíssima Sandra Bullock. É outra boa dica de que seres verdadeiramente humanos podem estar em qualquer parte.

Quando um dos adolescentes que conversaram com a Letícia Sabatella disse “Se não fosse por você, poderia estar na pior. Só tenho a te agradecer e pedir a Deus que ilumine sua carreira”, ele estava mostrando o poder de uma atitude, de uma conversa, de um olhar, de um voto de confiança. Pequenos gestos que são capazes de grandes transformações.

Fico pensando que, se todas as pessoas que gastam energia com ódio e vingança travestida de justiça gastassem transformando a vida de uma criança ou um adolescente, nosso mundo seria melhor. Porém, não o ideal porque na realidade vivemos num mundo injusto. Vivemos num mundo em que crianças sem condições financeiras, e que têm a TV como uma das poucas formas de lazer, são bombardeadas com mensagens que mostram o quanto são “felizes” aqueles que portam o celular caro; o tablet com internet móvel; a boneca que fala, canta e dança. Ah, como sorriem aquelas crianças. Como são amadas, enquanto outras milhares dormem ouvindo barulho de tiros, crescem perdendo amigos para o tráfico. Vivem uma vida sendo altamente cobradas por uma sociedade que mal consegue olhá-las nos olhos.

Desejo profundamente que ao invés das grades, balas e revólveres cinzentos vençam os lápis de cor, os gizes de cera, as canetinhas, os pincéis e as aquarelas.

Deixo aqui um dos meus trechos preferidos do livro Meu Pé de Laranja Lima:
— Quero falar uma coisa com você, Zezé. Espere um pouco.
Ficou arrumando a bolsa que não acabava mais. Se via que não estava com vontade nenhuma de me falar e procurava a coragem entre as coisas. Afinal se decidiu.
— Godofredo me contou uma coisa muito feia de você, Zezé. É verdade? Balancei a cabeça afirmativamente.
— Da flor? É, sim, senhora.
— Como é que você faz?
— Levanto mais cedo e passo no jardim da casa do Serginho. Quando o portão está só encostado, eu entro depressa e roubo uma flor. Mas lá tem tanta que nem faz falta.
— Sim. Mas isso não é direito. Você não deve fazer mais isso. Isso não é um roubo, mas já é um “furtinho”.
— Não é não, D. Cecília
— O mundo não é de Deus? Tudo que tem no mundo não é de Deus? Então as flores são de Deus também… Ela ficou espantada com a minha lógica.
— Só assim que eu podia, professora. Lá em casa não tem jardim. Flor custa dinheiro… E eu não queria que a mesa da senhora ficasse sempre de copo vazio.
Ela engoliu em seco.
— De vez em quando a senhora não me dá dinheiro para comprar um sonho recheado, não dá?…
— Poderia lhe dar todos os dias. Mas você some…
— Eu não podia aceitar todos os dias…
— Por quê?
— Porque tem outros meninos pobres que também não trazem merenda.
Ela tirou o lenço da bolsa e passou disfarçadamente nos olhos.

Recapitulando as dicas:
Livro:
Meu Pé de Laranja Lima – José Mauro de Vasconcelos
Filmes:
O contador de histórias
Irmã Dulce
Um sonho possível

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 Foto: cena do filme Meu Pé de Laranja Lima (2013)

 

Colunista Rebrinc

* Saiba mais sobre a colunista Débora Figueiredo:

Possuo um nome que faz referência a um bichinho e uma super árvore: Débora, que significa abelha, em hebraico; e Figueiredo, que faz referência às figueiras. Amo a natureza, embora viva numa metrópole lotada de obras, carros e prédios: Fortaleza, tão linda quanto frágil. Sou graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará e atualmente faço mestrado em Psicologia com o intuito de entender um pouco sobre as consequências que podem surgir a partir do contato dos pequenos com as novas tecnologias. Antes de ingressar no mestrado, fui professora de Filosofia por três anos em uma escola pública militar e foi essa experiência que fez com que eu despertasse interesse por temas como infância, consumo e novas tecnologias. Sou fruto de uma infância sem hambúrgueres, brindes, cinema e brinquedos em excesso, mas com muita rua, esconde-esconde, pega-pega e amarelinha. Eu também faço parte da Rebrinc e espero poder continuar contribuindo e aprendendo cada vez mais com a Rede.

Fale com a autora: contato@rebrinc.com.br

Texto feito especialmente para o site da Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc. Caso queira reproduzi-lo, pedimos que mencione a fonte e o autor, com link para o site. Ajude-nos a valorizar os autores e a divulgar o nosso trabalho pela infância.

 

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