Especialista alerta sobre os efeitos da publicidade infantil
Um bate-papo com Cristina Silveira, psicanalista, psicopedagoga e especialista em Educação. Criadora do Movimento Resgatando a Infância de Belo Horizonte e integrante da Aliança pela Infância, Cristina fala sobre a pressão para o consumo, a adultização da infância, o papel da família e a necessidade de garantir às crianças o direito ao brincar.
O que você acha da pressão que as crianças vivem hoje em relação ao consumo?
A pressão exercida pelo mercado e pela publicidade em geral sobre a infância é, no mínimo, um abuso. A criança não possui amadurecimento psíquico e emocional para lidar com determinadas imposições imputadas a elas pelo mercado. Se um comercial de um brinquedo ou um alimento usar uma linguagem autoritária como, por exemplo, “compre determinado brinquedo, porque ele te transforma em um herói”, a criança irá acreditar que realmente se tornará um herói e fará de tudo para que os pais comprem aquele produto para ela. Isso acontece porque a criança pequena ainda não sabe bem separar a fantasia da realidade. Ela ainda vive numa fase em que o mundo concreto não se apresentou completamente em sua psique, e devido a isso, é vítima fácil para o mercado. E os publicitários sabem muito bem disso.
Qual o reflexo desse incentivo ao consumo no desenvolvimento infantil?
A criança, que fica muito exposta a essa cultura do consumo, cresce baseada em valores equivocados, desestruturando todo o o seu desenvolvimento emocional e psíquico. Os valores trabalhados pela publicidade, que são padrão de beleza, poder, aparências, alimentação pouco saudável, dentre outros, acabam ocupando o lugar dos verdadeiros valores que edificam o caráter humano: amor, empatia, coletividade, humildade, caridade, dentre outros. É interessante ainda observar que determinadas publicidades são tão perversas que, para venderem, fazem menção a alguns desses valores para implantar a relação entre determinado produto e o valor humano. Um exemplo disso são produtos que vendem felicidade: “compre determinado produto e seja feliz”. A criança não tem defesas contra essa artimanha. Às vezes nem mesmo os adultos percebem essa “manipulação” e inconscientemente compram aquele produto. É um marketing poderoso, que utiliza anseios e necessidades humanas básicas para vender e ter lucro.
Como o consumismo infantil incentiva a adultização da infância?
O consumismo infantil incentiva a adultização da infância quando apresenta e valoriza produtos inadequados para o uso infantil, que normalmente vêm atrelados a comportamentos adultizados. São exemplos sandálias de salto, sutiãs de bojo para crianças, refrigerantes em embalagens parecidas com de champanhe, produtos químicos para cabelos, etc. Esses comerciais são muito atrativos, com muitos recursos tecnológicos e de indução. Além de adultizarem, reforçam que se a criança utilizar aquele determinado produto, ela será incluída em um grupo ou time aceito pela sociedade. Eles trabalham com a autoestima e também com o medo e a insegurança que a criança possa ter de não ser aceita na escola, no clube e nas turmas, porque não possui aquele produto. Dessa forma, a adultização vem sorrateira, fantasiada de “ingressos” para um mundo de consumo, onde a ditadura do mercado impõem que só os “ bons” podem acessar.
Está em tramitação na Câmara dos Deputados, o projeto de lei 5921 que trata do direcionamento da publicidade para as crianças. Como você e os integrantes do movimento Resgatando a Infância encaram a publicidade infantil?
Somos terminantemente contra a publicidade voltada para crianças. Por todos os motivos acima descritos e também porque os adultos é quem são os responsáveis pelas crianças. As crianças, além de não saberem cuidar e se proteger, não tem dinheiro, nem cartão de crédito para entrarem em uma loja e comprar os produtos. Quem compra os produtos são os adultos. Quando se direciona a publicidade para as crianças, o mercado quer dar um empoderamento para a infância que ela não tem. E nem deve ter, porque não estão preparadas para isto. Além disso, esse direcionamento da publicidade pode se tornar um problema muito sério para as famílias nesses tempos modernos em que vivemos. Os pais trabalham o dia todo, chegam em casa à noite, exaustos, e às vezes não tem tempo para administrar e oferecer uma “contenção psíquica” para as crianças em diversos assuntos, e o consumo é um deles. Assim, a publicidade direcionada se aproveita desse “gap” familiar, acessa a criança sorrateiramente em um momento onde ela está sozinha na TV, nos computadores, ou nas redes sociais e induzem as mesmas a exigir dos pais os seus produtos. Os pais acabam comprando para terem sossego ou para compensar a ausência destes na vida dos seus filhos.
O questionamento ao consumismo deve acontecer em toda a família. Você acha que estamos tendo oportunidades e incentivo para refletir sobre o consumo? Como as escolas estão atuando nesse sentido?
O questionamento ao consumo deve ser realizado por todos da sociedade. Todos nós somos responsáveis pelas crianças. Devemos protegê-las desse abuso. Mesmo porque as crianças de hoje serão os adolescentes e os jovens do futuro. Eles devem aprender que não podem consumir tudo o que é apresentado a eles. As crianças não sabem de fato se desejam aquele brinquedo ou aquele sapato. O que elas desejam é presença da família, cuidado, afeto e contenção psíquica, que podem estar sendo trocados por consumo. As crianças precisam amadurecer, para fazer suas escolhas. E esse amadurecimento só vem com o tempo, através da mediação dos adultos e com as relações com outras crianças através do brincar. Devem vivenciar as suas experiências, no sentido mais concreto da palavra, ou seja: correndo, fantasiando, criando, utilizando brincadeiras e brinquedos construídos por elas mesmas. E a sociedade tem a obrigação de oferecer isso a elas.
Conte-nos sobre o seu trabalho com o movimento Resgatando a Infância em Belo Horizonte e a participação na Aliança pela Infância.
Temos um movimento em Belo Horizonte que já vai fazer cinco anos, que se chama “Resgatando a Infância”. Esse movimento se iniciou porque alguns profissionais e pais perceberam o “ investimento” que estava sendo realizado por alguns setores para a adultização infantil e a mudança de comportamento das crianças. Nos associamos à Aliança pela Infância porque é uma ONG internacional, com muita credibilidade, que possui as mesmas convicções e ideias do grupo, no sentido de oferecer à criança uma infância de qualidade. Hoje somos representantes da Aliança pela Infância em Belo Horizonte. Pensamos que além do brincar, que é primordial e básico para o desenvolvimento na infância, ainda devemos estar atentos à necessidade da presença dos pais, acolhimento da escola, atenção das políticas públicas para a proteção da criança e investimento dos governos em espaços públicos de fácil acesso como parques e praças bem cuidadas. Participamos da campanha da Aliança pela Infância que acontece em todos os meses de maio e ainda de todas as reuniões regionais e nacionais que acontecem em diversas regiões do Brasil, para traçarmos nossas ações anuais pelo resgate da infância, através do brincar.
Cristina Silveira – Foto: arquivo pessoal