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ECA 25 anos: o que ainda precisamos fazer pelos direitos das crianças e dos adolescentes?

ECA 25 anos: o que ainda precisamos fazer pelos direitos das crianças e dos adolescentes?

Nossa entrevista é com a pedagoga Patrícia Guarany, especialista em Educação Escolar e mestranda em Direitos Humanos. Ela, que transita entre os processos educativos de dentro e de fora da escola, já passou por salas de aula da educação infantil ao ensino superior, por cursos, palestras, conferências e debates relacionados aos direitos da criança, além da atuação em ONGs. Atualmente pesquisa a inserção dos direitos da criança em livros didáticos dos anos iniciais do ensino fundamental. Na entrevista, Patrícia fala sobre o atual processo de redução da maioridade penal e sobre a importância da sociedade conhecer o ECA em profundidade.

Boa leitura!

 

A pedagoga Patrícia Guarany

A pedagoga Patrícia Guarany

 

 O que nossas crianças e adolescentes mais precisam nos dias de hoje?
Crianças e adolescentes, em qualquer tempo, necessitam de, ao menos, quatro tipos de “alimentos”: a comida, que nutre os movimentos físicos e do cérebro; os conhecimentos, que auxiliam na tomada de decisões e tornam a pessoa um sujeito capaz de refletir sobre a própria vida; carinho e afeto, que auxiliam no equilíbrio emocional, no sentimento de segurança e confiança em si; e sonhos, que trazem objetivos para a vida. Quando um ou mais desses “alimentos” faltam, o desenvolvimento fica deficitário, seja em família com alto poder aquisitivo, ou com baixo poder aquisitivo. Não é o dinheiro que dita as regras do desenvolvimento sadio da criança, mas a maneira como cuidamos da infância e da adolescência.

Como a sociedade percebe tais necessidades?
O que observo nos dias de hoje é que os adultos em geral e o Estado não têm a dimensão da necessidade de atender a esses quatro elementos. Adultos esquecem das angústias e dificuldades vivenciadas na infância e adolescência reproduzindo uma educação de cerceamentos, seguindo a lógica de que criança é um adulto em construção e não um cidadão sujeito de direitos, que é criança ou adolescente no momento presente, e que deve ser compreendido e protegido em sua fase peculiar de desenvolvimento, como propõe o ECA e autores da Sociologia da Infância. Do meu ponto de vista, nossas crianças e adolescentes precisam ser compreendidos e respeitados enquanto crianças e adolescentes, que necessitam de espaços de lazer, de cultura, de conhecimentos partilhados e, sobretudo, de amor e afeto para se desenvolverem e superarem a crueldade do sistema de ranqueamento e meritocracia.

Como você está vendo a ameaça da redução da maioridade penal no Brasil?
A ameaça de redução da maioridade penal está iminente e, a meu ver, nos encontramos em um momento bastante delicado diante de representantes do Estado conservadores e retrógrados. Tal redução é um retrocesso que pode gerar consequências devastadoras a médio e longo prazo que não estão relacionadas “apenas” aos adolescentes que cometem ato infracional, mas a uma violência social setorizada, que tende a refletir na sociedade de maneira a aumentar a distinção entre infâncias protegidas e desamparadas, como na época do Código de Menores (legislação anterior ao ECA, de 1927 e sutilmente reformulada em 1979), aumentando o abismo social em que vivemos atualmente. Nesse contexto, o Estado permanece com uma política higienista de confinamento dos problemas sociais ao invés de resolução de tais problemas.

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E qual o papel da mídia nesse contexto?
Observo a grande contribuição do apelo midiático no sentido de enfatizar, diariamente, a sociedade do medo colocando como grande protagonista o adolescente, afirmando e influenciando uma opinião pública a partir de dados duvidosos e opacos. A população se baseia em fatos mostrados pela mídia para dizer que os atos infracionais cometidos por adolescentes aumentaram, quando, em verdade, o que ocorre é que eles têm sido, propositadamente, mais evidenciados. Além disso, atos infracionais cometidos por adolescentes de famílias com poder aquisitivo nunca fazem parte dos noticiários, criminalizando um setor da população: o que é condenado. Outro argumento comum é dizer que há impunidade diante de crimes hediondos cometidos por adolescentes, o que não condiz com a realidade. O ECA apresenta sete medidas socioeducativas, sendo duas medidas que preveem a internação a depender da gravidade do ato infracional. Somado as essas questões, as pesquisas de opinião divulgadas pela mídia, que apontam em torno de 90% da população favorável à redução, não apresentam de maneira transparente as perguntas realizadas nem os segmentos sociais e regionais do país em que as pesquisas foram realizadas, defendendo enquanto verdadeiros dados fictícios: 90% de quantas pessoas é a favor da redução? É estratégico generalizar dados, que são apenas uma pequena amostragem, para garantir a opinião pública a favor da PEC 171/93. O que se coloca é: a quem serve investir no encarceramento da juventude em lugar de investir em educação, cultura e lazer? Até quando vamos remediar as situações ao invés de focar na prevenção e diminuição das desigualdades sociais?

E como vem sendo conduzido o processo por parte dos nossos representantes?
Os políticos, que têm em suas mãos o poder de estabelecer e redefinir as regras sociais, para fazer valer seu papel representativo, têm a obrigação de ouvir a análise de especialistas sobre os mais diversos assuntos em que estão deliberando. É um erro legislar a partir da moral e de valores individuais, como temos observado, sobre este assunto, a Câmara dos Deputados. Em sentido contrário, todos os órgãos competentes, instituições e organizações que pesquisam ou lidam com a infância e com a violência, além de órgãos jurídicos, são enfáticos em reafirmar que confinar adolescentes em cadeias com adultos, a partir de sentença criminal, potencializa a problemática da violência junto à juventude e também o aliciamento de adolescentes mais novos. A vida desses adolescentes e as consequências dessa decisão têm feito parte de um jogo de interesses políticos que vai completamente de encontro aos propósitos dos direitos humanos previstos na Constituição.

O que cada um de nós pode fazer pela proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes?
Um bom início é observar a si próprio, como você enxerga as crianças e os adolescentes? Você os respeita em sua condição de desenvolvimento? Fazer diferente, refletir sobre as próprias posturas é mais importante do que levantar bandeiras de ações que não condizem com o que somos. Resgato Paulo Freire para dizer que educamos a partir de quem somos. Agir de maneira respeitosa com crianças e adolescentes é um bom começo em direção à proteção de seus direitos. Por outro lado, agir adequadamente, também, pressupõe conhecer o ECA para além dos artigos fundamentais. É necessário identificá-lo em sua atmosfera social, que não se refere à caridade ou à filantropia, mas que envolve compreender profundamente o que significa ser um “cidadão de direitos em fase peculiar de desenvolvimento” e o porquê da necessidade de proteger este segmento social. Pensando em uma estratégia mais macro, outra forma de contribuir é participar de mobilizações sociais que envolvem a proteção de crianças e adolescentes e a fiscalização da garantia do ECA. É importante que os grupos e pessoas se unam a favor desta causa comum o que confere mais força às ações da sociedade civil e poderão ser ouvidas com maior ênfase por outros setores da população. De qualquer forma, não há ações definidas ou preestabelecidas. O entendimento do que pode ser feito frente à proteção dos direitos da criança e do adolescente vai variar de acordo com o perfil e atuação na sociedade de cada pessoa, é preciso identificar sua própria contribuição nesta luta, que é cotidiana e permanente.

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Vivemos os 25 nos do ECA e o debate da questão da redução da maioridade penal. O que você sente no atual momento do Brasil com relação aos direitos das crianças?
O ECA completou, em 2015, 25 anos de existência sem, ainda, ter sido colocado em prática totalmente. Colocá-lo em prática é, efetivamente, ter toda a população ciente do que corresponde a infância e a adolescência em nossa sociedade, corresponde em compreender a responsabilidade de proteger um segmento da população que é historicamente subjugado e diminuído em suas capacidades. Nós não temos um Sistema de Garantia de Direitos que funcione para todas as crianças e adolescentes. Nossa sociedade permanece com uma postura do início do século XX o que significa considerar que filhos de famílias com poder aquisitivo são “naturalmente” protegidos e “naturalmente” pessoas boas, enquanto crianças da periferia são “naturalmente” perigosas e “naturalmente” pessoas fracassadas. Neste contexto, a sociedade segue um modelo de pensamento e ação que ainda não atingiu o paradigma da proteção integral de todas as crianças.

Por que ainda não compreendemos o Estatuto da Criança e do Adolescente?
Nosso Sistema não consegue avançar em direção à efetivação do ECA porque as ações de conscientização da população sobre a criança enquanto prioridade absoluta e sujeito a ser protegido foram e são incipientes, e é importante perceber que são efetivamente as pessoas que transformam a sociedade. O que tivemos foram ações pontuais de formação promovidas pelo Estado nas diferentes instâncias e pela sociedade civil organizada, sendo que a temática da criança e o novo olhar para esses sujeitos de direitos não foram bandeiras levantadas por nenhum governo desde 1990, e campanhas nesse sentido sempre foram restritas a questões que não problematizam a mudança de postura social. O ECA é, ainda, reduzido a artigos de uma legislação e não observado enquanto um novo paradigma de tratamento de crianças e adolescentes. Assim, as “formações em ECA” ocorreram, e ocorrem, normalmente limitadas ao aspecto jurídico da Lei, divulgando apenas os direitos fundamentais, sem problematizar os aspectos sociais da Lei, que preveem uma mudança de postura da sociedade. Pudemos observar os reflexos desta incompreensão do Estatuto quando, por exemplo, no ano passado foi sancionada a Lei 13010/14, conhecida popularmente como Lei da Palmada, sob forte repreensão social. Os adultos, de maneira geral, se viram acuados em não poder utilizar a violência física e/ou psicológica para “educar” crianças e adolescentes, sentindo-se perdidos em como proceder diante de momentos de repreensão sem o uso da violência. Este fato demonstra um problema social grave, também evidenciado no atual momento com a polêmica proposta de redução da maioridade penal. A violência em nossa sociedade é sistêmica, afeta a todos, independente da idade ou lugar social, e está relacionada tanto a aspectos de injustiças e diferenças sociais, quanto à educação familiar.

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Como essa violência se concretiza no cotidiano?
Quem fecha o vidro do carro diante de uma criança é tão violento quanto a resposta da criança frente a essa ação. A família que pretende substituir amor e carinho por presentes abandona tanto quanto a família que deixa a criança em casa sozinha aos próprios cuidados. O Estado que abandona escolas públicas e as transforma em locais desagradáveis para o ensino-aprendizagem e para uma convivência harmônica é tão violento quanto o adolescente que se revolta com esta situação e depreda a escola. O sistema neoliberal que propôs definir sujeitos baseado no poder de consumo é tão cruel e agressivo quanto os adolescentes que buscam fazer parte deste sistema a partir do roubo de bens e acessórios que os tornará “gente”. Eles tiveram sua adolescência e dignidade roubadas pelo Sistema e esta questão não é novidade em nossa formação social. É necessário observar os aspectos históricos que envolvem a marginalidade de parte da população para identificar a violência que acomete a sociedade hoje, e começar a agir a partir do reparo a estas diferenciações. Proporcionar espaços de lazer gratuitos para a população adolescente, escolas equipadas e ambientalmente agradáveis são, também, maneiras de investir na prevenção da violência, ao invés de potencializá-la com mais presídios.

O que tem sido feito para que o ECA seja conhecido de fato?
No atual momento, sinto que o ECA não é compreendido pela população porque não é conhecido. As pessoas têm conhecimento apenas de alguns direitos fundamentais, ainda assim, desvinculando direitos de responsabilidades e deveres. Dessa forma, também educam crianças e adolescentes de maneira errada sobre seus próprios direitos causando a falsa ideia de que são “intocáveis”. Assim, a “proteção” de que tanto falamos, se torna justificativa para uma série de violações cometidas tanto por adultos quanto por crianças e adolescentes. Neste sentido, acrescento que é fundamental educarmos crianças, adolescentes e adultos sobre os direitos da criança. Desde 2007, a LDB, em seu artigo 32 §5º, dispõe sobre a obrigatoriedade da inserção dos direitos da criança em materiais didáticos, o que tem sido feito timidamente, ainda sob discursos contraditórios, como observado em minha recente dissertação sobre o assunto. As legislações e diretrizes em educação em direitos humanos igualmente apontam para a direção de educarmos sob tais perspectivas para uma efetiva mudança na postura social, porém, das leis para a prática há um caminho a ser trilhado. Por último, ressalto que é importante reconhecer que há aspectos a serem melhorados no ECA como, por exemplo, considerações mais específicas relacionadas aos diferentes tipos de deficiência, as questões de gênero, sobre publicidade e consumo na infância, entre outros. Entretanto, reduzir a maioridade penal ou o aumento no tempo de internação de adolescentes não são bandeiras que defendo. Ao contrário, acredito que estas alterações fazem parte de um acirramento da política higienista, não resolvendo o problema da violência e, expulsando mais ainda, quem já está à margem da sociedade. A sociedade está em movimento e o Estatuto da Criança e do Adolescente, uma das leis mais avançadas do mundo neste segmento, precisa acompanhar as transformações sociais reafirmando as conquistas e rechaçando qualquer tentativa de retrocesso de direitos conquistados.

Leia também: RevistECA: o ECA em questão

Foto do topo: Sheila Tostes/Flickr

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