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Criança X consumo: um jogo para adultos

Criança X consumo: um jogo para adultos

Jornalista Nayá Fernandes – Jornal O São Paulo
nayafernandes@gmail.com

Quem já não se viu quase hipnotizado em frente a uma propaganda de televisão ou internet? Mesmo conscientes de que a maioria das publicidades têm o único objetivo de convencer o interlocutor a adquirir determinado produto ou serviço, às vezes, as escolhas cotidianas de grande parte da população são baseadas nelas, as tão engenhosas e “bem boladas” propagandas. Mas, e quando o público alvo das marcas e empresas são as crianças? Como pais e educadores devem agir diante dos desejos infantis provocados por tais incentivos mercadológicos de consumo?

Evitar o consumismo não é tarefa fácil, seja para adultos ou crianças. Para Dílvia dos Santos Ludvichak, autora de livros infanto-juvenis e coordenadora de divulgação e eventos na área editorial, “a publicidade feita para a criança é extremamente envolvente, estabelece vínculos e dialoga com ela. A publicidade conhece os caminhos, isso é inegável”.

Dílvia e o esposo, José Aldo de Souza Santos, são pais do Nickolas que tem 8 anos. “O Nickolas como todas as crianças de hoje, apresentou desde muito cedo, significativa capacidade de interação. Quando parecia distraído, nos surpreendia com alguma resposta ou comentário, relacionado ao que estávamos conversando, ou mesmo vendo na televisão. Começamos a perceber que ele estava atento, e absorvia informações, principalmente quando reproduzia jingles, e o curioso, é que não necessariamente precisavam ser de peças publicitárias para o público infantil”, contou a mãe.

Mas ela garante que, mesmo diante da identificação do filho com personagens, nem sempre ele ganhava o que pedia, e assim, os pais foram aprendendo que nas crianças, o interesse chega e parte com a mesma velocidade. “Hoje ele é um pouco menos aficionado pelos personagens, talvez porque já tenha um pouco mais de capacidade para refletir e fazer escolhas.”

A professora Regina de Assis, Consultora em Educação e Mídia, explicou à reportagem algumas das características encontradas na publicidade infantil e que a maior parte se refere aos personagens utilizados. “As próprias crianças, adultos representando a família, animais, brinquedos, roupas, sapatos, adereços, cenários com cores e movimentação, música ou efeitos sonoros atraentes. As imagens devem falar por si e os diálogos, quando existentes, devem ser resumidos, emocionantes, engraçados e convincentes.”

Dílvia, porém, lembra que as campanhas publicitárias, não são só vilãs, ou, não precisam ser só isso. “Testemunho em minha casa, que quando a publicidade se propõe a defender algum valor, como a preservação do meio ambiente, ou o cuidado com a saúde, ou dos animais, também produz eco na criança.”

Faltam exemplos?
Para a mãe do Nickolas, Dílvia, o processo de compressão dos limites deve passar, em primeiríssima mão, pelos pais. “Os adultos muitas vezes são ‘tocados’ antes das crianças, para as novidades do mercado. Tem uma série de coisas envolvidas, como por exemplo, a impressão de facilidade de aquisição, o desejo de compensação, ou simplesmente o ato de querer agradar. Não há possibilidades de êxito nesse processo de educar a criança para a compreensão dos limites, se a família como um todo, não se propõe a estabelecê-los.”

O controle ou autocontrole dos país pode ser dificultado por outros aspectos, como a pressão que as crianças sentem quando começam a se comparar com os amigos da escola ou os apelos constantes nas datas comemorativas. “As famílias de baixa renda são as mais vulneráveis, pois, supostamente ter é mais importante do que ser, e estar incluído na corrente dominante da sociedade. Conversando com pais e avós de baixa renda e já agora de classe média também, eles revelam ‘odiar’ as datas festivas como Dias das Mães, dos Pais, das Crianças, Páscoa e Natal, por sofrerem uma pressão insustentável e uma frustração dolorosa ao não poderem satisfazer os desejos de suas crianças”, ressaltou Regina de Assis.

“Vez por outra, ele nos pergunta se nunca irá à Disney, e no que depender de nós, provavelmente não irá. Conhecemos nosso filho, e sabemos que não é exatamente um programa que o agradará. É muito mais porque colegas seus já foram, ou comentam que desejam ir. O nosso papel consiste, então, em filtrar e confrontar os desejos de consumo dele. Hoje ele faz parte desse contexto, depende financeiramente de nós, mas será a partir dessa experiência, que pautará a sua forma de administrar-se”, comentou Dílvia.

Proibida por lei
Quem tem mais de 30 anos talvez se lembre de algumas propagandas como “Compre batom” ou “Não esqueça da minha Caloi”, que foram depois de 2006 proibidas pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). Mas as medidas e o próprio artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) que considera abusiva e, assim, ilegal a publicidade que “se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança” não são suficientes para frear os muitos apelos feitos às crianças para se tornarem cada vez mais consumistas.

Desirée Ruas é jornalista e integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo (Rebrinc), uma rede horizontal e colaborativa que reúne, virtual e presencialmente, pessoas físicas, instituições e movimentos em defesa dos direitos de crianças e adolescentes diante das relações com o consumo. Para ela “o ano de 2014 nos presenteou com a resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Desde 4 de abril de 2014, data da publicação da resolução do Conanda, o assunto, antes restrito a grupos e movimentos que questionam a prática, passou a ser um debate de toda a sociedade”.

Em 2015 houve a retomada das discussões do Projeto de Lei (PL) 5921/2001 que tramita há mais de 14 anos no Congresso. No dia 21 de maio, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados realizou uma audiência pública. “O PL 5.921/01 de autoria do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), visa criar regras claras para proibir a publicidade dirigida ao público com menos de 12 anos. O texto deve ser votado pela CCJC nas próximas semanas”, completou Desirée.

Para ela, “a resolução 163 representou um marco histórico para a discussão do tema publicidade infantil e para a proteção dos direitos da criança no Brasil. Para nós, da Rebrinc, a resolução não está sendo respeitada porque os interesses comerciais estão sendo colocados acima dos interesses da infância”. Além das publicidades, Desirée apontou outras práticas como o comércio de lanches com brindes e as ações de marketing nas escolas.

O projeto Criança e Consumo possui um espaço para denúncias. Para saber como participar do Projeto ou fazer denúncias, basta acessar o endereço: http://criancaeconsumo.org.br/denuncie/ ou enviar um e-mail para pl5921@publicidadeinfantilnao.org.br e assinar o manifesto pelo fim da publicidade e da comunicação mercadológica dirigida ao público infantil. Em defesa dos diretos da infância, da Justiça e da construção de um futuro mais solidário e sustentável para a sociedade brasileira.

E as meninas moças?
Camila usa batom, têm as unhas pintadas, está maquiada e com cabelo alisado pela chapinha. Usa salto, calça jeans e uma blusa apertadinha. Mas ela só tem 8 anos. Camila pode ser uma entre tantas crianças que ainda pequenas são introduzidas a um mundo que não é o seu: o da moda ou dos padrões de beleza. Levadas por apelos midiáticos ou até mesmo, incentivadas pelos pais, as crianças são “adultizadas” ainda muito cedo e quem deveria proteger, muitas vezes, acha “bonitinho” e aprecia determinadas práticas.

Porém, o que muitos adultos não percebem é que consequências indesejadas podem surgir dessas atitudes, como “sexualidade e gravidez precoce; consumismo e a perda da inocência e do encantamento da infância”, como exemplificou Cristhiane Ferreguett. Ela defendeu na PUC-RS, em agosto de 2014, uma tese de doutorado em letras cujo tema é “Relações dialógicas em revista infantil: o processo de adultização de meninas”.

Cristhiane fez o estudo sobre o discurso midiático dirigido às crianças, em especial às meninas. “Tomei conhecimento de pesquisas que constataram que a criança desenvolveu certo grau de ceticismo em relação à publicidade. Para vencer esta resistência, o discurso publicitário passou a se camuflar e a se inserir em diversos gêneros do discurso, especialmente nas reportagens das revistas infantis. Inserido em reportagens, o discurso publicitário passa a ser mais aceito pela criança. Portanto, na minha tese, analisei como o discurso publicitário se engendra nos discursos de reportagens de uma revista infantil e que efeitos de sentidos produz no que se refere à ‘adultização’ precoce da menina.”

Roseni Nunes de Vasconcelos e Evandro Luiz Tschá são pais três filhos: Ênio, 13 anos; Lorena, 11 e Heloísa, de 7 anos. Roseni afirmou que sempre tentou mostrar para os filhos o valor das coisas e sempre insistia: “Não seja ‘maria vai com as outras’”. Sempre gostou de batom, mas permitia que as meninas usassem somente um brilho labial quando queriam imitá-la. “Vejo que muitas mães querem que seus filhos sejam espelho do que dita a moda. Só comprei o primeiro sutiã para a Lorena quando percebi que os seios dela estavam crescendo e ela concordou em usar o básico. Como a Heloísa sempre quis imitar a irmã, então comprei um top para ela.”

A irmã de Roseni, Roseli Vasconcelos Reis, mãe da Ariane, que tem 10 anos e do Vinicius, 12 anos, participou da entrevista e se surpreendeu ao saber que a publicidade infantil é proibida. Ela disse que acredita no tempo livre das crianças como espaço de formação e desenvolvimento.

Infância perdida?
“Percebemos que, muitas vezes, as famílias ficam perdidas. Se sentem sozinhas e sem apoio, pois a mídia reforça que a mulher e o homem têm um padrão de beleza e quem não se enquadra está fora. Nesse contexto acontece a ‘adultização’ e percebemos que algumas famílias podem incentivá-la por falta de conhecimento”, considerou Patrícia Aparecida Silva é pedadoga e desenvolve atividades na zona leste de São Paulo, atendendo crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social.

Educadora e fundadora do Projeto Âncora, Regina Machado, ponderou que este processo limita para a criança o tempo para o sonho, a fantasia, a criatividade, a reflexão. “No livro ‘O Desaparecimento da Infância’, de Neil Postman, o autor fala em uma ‘adultização’ da criança e ‘infantilização’ do adulto. Não é raro vermos mulheres vestidas com roupas quase infantis e crianças pequenas de unhas pintadas e batom. Podemos notar uma erotização precoce e até mesmo a defesa de cadeia para menores. O bom dessa tragédia toda é que ninguém está satisfeito com ela. Um dia nos daremos conta de que a busca da felicidade é muito mais fácil do que imaginamos e demanda poucas coisas.”

Para Regina de Assis, consultora em Educação e Mídia, há o encurtamento da infância. Ela lembrou que meninos e meninas igualmente passam por etapas indispensáveis e insubstituíveis, no processo de constituição de conhecimentos e valores. “Talvez o processo com as meninas seja mais visível, por causa dos famigerados concursos de beleza, blogueiras mirins, pequenas ‘funkeiras’, todas contribuindo para aumentar a renda familiar da maneira mais perversa, abrindo caminho para a prostituição, o alcoolismo e o vício em drogas. Mães frustradas, com pouca educação e informação, buscam se realizar nas atividades das próprias filhas crianças, induzindo-as a encurtarem drasticamente sua infância e provocando graves consequências. No entanto, os meninos também são iniciados como ‘DJ´s do funk e do hip/hop’, entrando muito cedo, também para o mundo da violência, dos vícios e do crime.”  

Existem alternativas?
– Dê o exemplo: a família precisa seguir as mesmas regras. Os pais não podem comprar demais e depois falar em combate ao consumismo infantil. Coerência é fundamental;

– Questione práticas abusivas que envolvam o direcionamento da publicidade para crianças com as empresas e também nos órgãos de defesa do consumidor e da infância;

– Promova opções para que as crianças possam brincar em espaços livre de apelos comerciais. Fuja das atividades de férias promovidas em shoppings. Procure parques e praças para levar as crianças;

– Incentive a reutilização de roupas, sapatos, brinquedos, material escolar, etc.

– Questione os apelos comerciais por trás das datas comemorativas como Natal, Dia das Mães, Dia dos Pais e Dia das Crianças. Ensine a criança a questionar os comerciais que associam consumo a felicidade;

– Fale sobre alimentação saudável e mostre as estratégias das empresas para vender cada vez mais produtos que não fazem bem à saúde;

– Busque opções de lazer e diversão que não incluam as telas como computadores, celulares, joguinhos;

– Fique de olho nas ações de marketing que acontecem dentro das escolas e na porta delas. Questione quando os alunos forem alvo de ações desta natureza;

– Incentive grupos de discussão sobre o consumismo infantil na igreja, na escola, no clube ou na sua comunidade;

– Faça refeições em família e sem TV ligada por perto;

– A adultização não acontece apenas com o uso de roupas de adulto, mas com o acesso a questões como violência e sexualidade, seja em telejornais, novelas, revistas e pela internet;

– Conheça os movimentos e organizações que questionam o consumismo infantil: Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc; Movimento Infância Livre de Consumismo, Milc; Projeto Criança e Consumo e Projeto Prioridade Absoluta (Instituto Alana), dentre outros.

Publicado no Jornal O São Paulo edição 3062 – 29/07 a 04/08/2015 (Acesse aqui a versão original)