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A criança é um produto dos padrões sociais de consumo?

A criança é um produto dos padrões sociais de consumo?

Por Caio Fábio Sampaio Porto – Graduando em Ciências Sociais pela UnB

Muito se discute sobre o papel da criança na sociedade de consumo: a utilização de marcas infantis em produtos industrializados, a publicidade voltada às crianças, a sexualização infantil, etc. Discutem-se os hábitos alimentares, de estudo e de sono, o tipo de lazer e os métodos mais adequados para o ensino dos pequenos. Em todos esses casos, porém, a criança é vista como mera consumidora dos produtos que a sociedade lhe oferece, indo pouco além disso. Mesmo quando se questiona o uso de crianças em propagandas, a atenção está voltada apenas à proteção de nossos consumidores em miniatura, justamente enquanto consumidores.

Adotar apenas esse ponto de vista é ceder justamente no ponto mais central da problemática infância-consumo: admitir que as crianças são agentes econômicos, ignorando que elas são, antes de tudo, produzidas socialmente em seus gostos, comportamentos, ideias e opiniões, a partir da imposição arbitrária de hábitos de consumo subjacentes à lógica do sistema econômico no qual estamos inseridos. Pensar assim é apontar sintomas como a doença, é ignorar que não adianta se posicionar contra determinadas propagandas abusivas e alimentos inadequados que são oferecidos às crianças sem atacar as raízes do problema.

E o problema é que, antes de aprenderem a falar, nossos filhos aprendem a ser bons consumidores, e seguem nesse caminho durante toda a vida. Admitir a criança enquanto agente de consumo é admitir que elas são maduras o suficiente para fazer determinadas escolhas por si próprias, escolhas essas que as crianças demonstram ser cada vez menos capazes de fazer de maneira que não sejam ludibriadas pelo mercado, que apela aos sentimentos mais básicos, o que não é compatível, pelo menos não de uma maneira saudável, com a forma como nossa sociedade se organiza atualmente.

Nossa sociedade se organiza, desde o fim da Idade Média, em um sistema que pressupõe uma racionalidade inerente a todos os indivíduos, racionalidade esta que permite aos agentes econômicos tomar decisões de maneira mais vantajosa possível para si próprios. O sujeito econômico que toma decisões de maneira racional, com o objetivo de maximizar seus ganhos e minimizar suas perdas é o pressuposto que irá justificar toda a expansão comercial  e industrial que o mundo viveu nos últimos quinhentos anos, ao qual os economistas chamarão de homo oeconomicus (do latim, homem econômico).

De pressuposto teórico, mera suposição para facilitar o estudo da ação humana, o homo oeconomicus passou a servir de justificativa para a manutenção de um sistema comercial baseado no lucro, pois num mundo ideal onde todos os consumidores e agentes econômicos agem de maneira perfeitamente racional, os diferentes interesses irão limitar o egoísmo e os preços injustos gerais, promovendo um império da racionalidade que tornaria o sistema justo e vantajoso para todos.

Só há um pequeno problema: indivíduos simplesmente não agem de maneira perfeitamente racional. Na verdade, muito raramente o fazem, e os empresários e publicitários sabem disso. Assim fosse, ninguém fumaria e, em vez de propagandas engraçadinhas ou com mulheres seminuas, teríamos simples listagens de vantagens e desvantagens objetivas dos produtos vendidos. Fatores como o status, a sensação de pertença ou o próprio impulso consumista não existiriam. Nem por isso, entretanto, o discurso do indivíduo racional desaparece.

O consumidor racional é ponderado, cuidadoso e, por isso mesmo, muito pouco lucrativo. Por isso o apelo emocional é predominante na publicidade: ela não quer te fazer pensar, quer te fazer consumir. E consumir coisas mais caras, consumir mais constantemente, consumir mais irracionalmente, consumir mais desnecessariamente, até transformar o consumo em um fim em si próprio. Quem não tem um parente ou amigo que compra quase que como um ritual? Como se sua existência dependesse disso? É para isso que somos educados: para consumir mais e mais irresponsavelmente, gerando dívidas que geram mais trabalho para pagar as dívidas. Tudo isso enquanto acreditamos estar fazendo tudo de livre e espontânea vontade, como bons indivíduos racionais que somos. Cada vez mais cedo, cada vez mais vorazmente, cada vez menos racionalmente: eis o verdadeiro consumidor fabricado pelo século XXI.

Por isso, mais importante que uma propaganda ou outra que ultrapassa os limites de indignação que a própria organização do sistema econômico vigente permite que tenhamos é questionar as raízes dos problemas que temos hoje. Não basta questionar a sexualização da infância ou mesmo o início do fim dessa fase da vida: sabe-se perfeitamente que tanto a infância quanto todas as outras ‘fases’ da vida estão sendo sistematicamente espremidas em favor da “juventude”, notavelmente o período da vida no qual mais consumimos e mais irracionalmente. É preciso ultrapassar a zona de conforto de indignação que a sociedade de consumo permite: é preciso questionar as bases mesmas dessa sociedade. O que vemos são sintomas de algo muito maior, de uma engrenagem que rouba cada vez mais e cada vez mais cedo qualquer início de pensamento crítico e independente de nossas crianças. O homo oeconomicus é um mito e, como tal, precisa ser derrubado. E urgentemente.

 

 

Imagem: (montagem) Freepik

Publicado em 22/11/2015

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* Saiba mais sobre o colunista Caio Sampaio

Um cara que pensava diferente em um Colégio Militar, incapaz de dizer amém a qualquer coisa. Uma criança que mal ganhava brinquedos e a quem nunca ninguém negou um livro, por mais difícil que ele fosse. Um menino que não podia ver uma banca de revista e já queria levar ela toda pra casa. Quando sua mãe o queria quieto, comprava pra ele uma pilha de revistinhas, não um eletrônico qualquer. Uma pessoa que aos nove anos leu por puro acaso o seu primeiro livro sério, Revolução dos Bichos, fazendo surgir um vício que nunca abandonou. Criança inconveniente que era, logo desenvolveu um grande amor por História, só piorando a partir daí. Hoje cursa Ciências Sociais na Universidade de Brasília, onde pode ser chato à vontade. 

Fale com o autor: contato@rebrinc.com.br

Texto feito especialmente para o site da Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc. Caso queira reproduzi-lo, pedimos que mencione a fonte e o autor, com link para o site. Ajude-nos a valorizar os autores e a divulgar o nosso trabalho pela infância.