Sobre o desaparecimento da infância
Por Débora Figueiredo* – Graduada em Filosofia e mestranda em Psicologia
Quem nasceu em 1989, como eu, teve a oportunidade de viver toda a infância nos anos 90. Nos últimos dez anos de um século, de um milênio. Penso nos anos 90 como uma época de transição quando o assunto é infância. Naquela época, não tão distante assim, ainda brincávamos na rua. Não precisávamos de escolinhas para aprender a brincar na rua de roda, amarelinha, esconde-esconde, pega-pega. Um coleguinha ensinava para o outro, que ensinava para o outro e assim tudo caminhava.
Ao mesmo tempo, as tecnologias começaram a entrar nos lares. Eu mesma cheguei a ganhar do meu pai, eterno admirador de novidades tecnológicas, um videogame e um computador antes dos sete anos. Mas não lembro de mais nenhum amiguinho que tinha. A TV já havia dominado os lares. Os ícones na infância, nos anos 90, não eram lá uma série de bons exemplos de cultura. Eu tiraria o Chaves da lista de horrores, daria uma colher de chá para Chiquititas e, definitivamente, jogaria no abismo “É o Tchan” e “Mamonas Assassinas”. Sim, “É o Tchan”. A briga era para saber quem seria a loira, quem seria a negra e, alguns anos depois, quem seria a morena (o mesmo tipo de briga acontecia para saber quem seria a rosa ou a amarela, dos “Power Rangers”). Minha mãe falou esses dias na maior naturalidade: “- Não se esqueça que você queria dançar na boquinha da garrafa”. “O quê? Mãe, esquece isso. Sério”. Reparem que eram ícones de uma “cultura pop” transmitida via TV.
Estou falando tudo isso porque, como eu disse, vejo aquela época como uma transição. Hoje, praticamente não vejo crianças brincando na rua. Ok, rua não. Rua é para carros. Ou não é? Mas, então, reformulo: praticamente não vejo crianças e suas famílias ocupando espaços públicos. Onde estão esses espaços? Espaços para convivência, para a nutrição de um sentimento de pertencimento ao espaço urbano. Esses espaços são substituídos por templos de consumo (leia “shopping”) ou, na “melhor” das hipóteses, pelas áreas externas de condomínios fechados, onde as crianças aproveitam para fazer vídeos com os amigos na piscina para depois postar em seus canais no YouTube (sim, vi um vídeo assim hoje).
A infância parece encurtar cada vez mais. Esse assunto não é novidade. Existe um livro cujo nome é “O desaparecimento da infância”, que aponta a erotização precoce como um dos principais fatores responsáveis por esse encurtamento. O autor, Neil Postman, tratou dessa temática ainda no final dos anos 70. O que diria ele se visse que o desenvolvimento das novas tecnologias tem acelerado ainda mais esse processo? Você já reparou na quantidade de vídeos de crianças ensinando como fazer maquiagens na internet? Algumas delas viram verdadeiras personalidades, participando de programas de TV, fazendo entrevistas, etc. Elas imitam as famosas blogueiras de moda e de maquiagem direitinho. Mostram, inclusive, quais as marcas que usam nos cabelos, nos olhos, na boca. Não apenas são crianças consumistas, mostrando quantos ovos de páscoa ganham ou quais suas “comprinhas” da semana, como são também crianças que pouco preservam traços da infância. São mini adultos.
Além dos vídeos imitando blogueiras, você pode achar também, caso tenha estômago, crianças trabalhando no meio artístico musical desde os 7 ou 8 anos de idade. Lembra daquela história que minha mãe contou sobre eu querer dançar na boquinha da garrafa? Já pensou se ela tem uma veia forte de empresária? Se bem que talvez fosse bem mais difícil tornar uma criança famosa por seus “talentos artísticos” sem as redes sociais. Experimente procurar na web “Mulekada” junto com “Cerol na Mão”, “Tapinha”, “Dança da Motinha” ou “Melô do Tchan”. Boa sorte. Se, depois de assistir, você achar que está fraco, pode procurar algumas coisas mais fortes. É só procurar por alguns “MC’s” mirins, ou seja, algumas crianças funkeiras (e não, o problema aqui não se resume ao funk) cantando músicas que conseguem extrapolar o limite da sugestão sexual. É sexo explícito, são palavras obscenas.
Se com sete anos de idade uma garotinha trabalha fazendo shows noturnos, sensualiza em vídeos na internet e usa maquiagens pesadas, o que ela vai poder dizer sobre a infância dela quando ela tiver 30 anos? Que infância? E que visão de mundo essa pessoa terá, já que teve queimada uma das principais fases da vida? O mesmo eu pergunto sobre um menino de 12 que, tendo essa mesma profissão, aprende desde cedo a tratar mulheres como objetos, reproduz uma cultura machista já tão enraizada na nossa sociedade e é induzido a fazer apologia ao consumo desenfreado de objetos caros e a falar de sexo da maneira mais chula que você possa imaginar.
Claro que não há como generalizar. Não é toda criança que pega num tablet ou smartphone que sai fazendo vídeos constantemente sobre sua rotina, mostrando todas as coisas que compram e têm, mostrando como agir como adultos, mediando sua vida e suas relações por meio de telas. Não é todo pai e mãe que permite que os filhos se exponham nesse nível, mas não é por isso que a situação simplesmente deixa de ser preocupante. São crianças. São nossas crianças formando um mundo em que a fase adulta chega tão logo a criança aprende a falar. É como se estivéssemos voltando aos tempos medievais. E isso assusta. Sinto vontade de abraçar e agradecer todos os pais que se empenham todos os dias em preservar ao máximo essa fase tão preciosa de nossas vidas.
Obs.: Assim que terminei de escrever o texto, tomei conhecimento que uma revistinha em quadrinhos, abordando temas como sexualidade e consumo de álcool e com diálogos machistas, foi gratuitamente distribuída para crianças de 7 a 10 anos no litoral paulista.
Imagem: Brincadeiras de criança (óleo sobre tela – Ricardo Ferrari – MG)
* Saiba mais sobre a colunista Débora Figueiredo:
Possuo um nome que faz referência a um bichinho e uma super árvore: Débora, que significa abelha, em hebraico; e Figueiredo, que faz referência às figueiras. Amo a natureza, embora viva numa metrópole lotada de obras, carros e prédios: Fortaleza, tão linda quanto frágil. Sou graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará e atualmente faço mestrado em Psicologia com o intuito de entender um pouco sobre as consequências que podem surgir a partir do contato dos pequenos com as novas tecnologias. Antes de ingressar no mestrado, fui professora de Filosofia por três anos em uma escola pública militar e foi essa experiência que fez com que eu despertasse interesse por temas como infância, consumo e novas tecnologias. Sou fruto de uma infância sem hambúrgueres, brindes, cinema e brinquedos em excesso, mas com muita rua, esconde-esconde, pega-pega e amarelinha. Eu também faço parte da Rebrinc e espero poder continuar contribuindo e aprendendo cada vez mais com a Rede.
Fale com a autora: contato@rebrinc.com.br
Texto feito especialmente para o site da Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc. Caso queira reproduzi-lo, pedimos que mencione a fonte e o autor, com link para o site. Ajude-nos a valorizar os autores e a divulgar o nosso trabalho pela infância.
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