Sexo na escola?
Por Tamara Amoroso Gonçalves* – Advogada graduada pela PUC/SP e mestra em Direitos Humanos pela USP
Quando é a hora certa de falar sobre sexo e sexualidade com as crianças? Qual o papel dos pais, das famílias e do Estado nesse processo? As políticas públicas relacionadas à educação integral em sexualidade tendem a refletir, em alguma medida, valores morais de cada nação. Enquanto os Estados Unidos, seguindo a bandeira da abstinência sexual, priva seus jovens de informações adequadas sobre sexualidade e tem um dos maiores índices de gravidez na adolescência entre os países desenvolvidos; o Reino Unido e o Canadá recentemente anunciaram que discutirão, dentre outros temas, a noção de consentimento para a prática de relações sexuais com adolescentes a partir dos 11 anos de idade.
O Brasil – embora tenha se comprometido com tratados internacionais de direitos humanos a promover educação integral em sexualidade; obrigação também replicada na Constituição, em diversas leis e mesmo em compromissos públicos como o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos – ainda patina nesse assunto. Com esses compromissos, o Estado se obriga a promover e discutir sexualidade nas escolas, a partir da lente dos direitos humanos: assegurando informações que empoderem as escolhas sexuais dos alunos e que contribua para a reversão de preconceitos relacionados a estereótipos de gênero.
O governo federal iniciou alguns programas para tratar destes temas nas escolas, mas é fato de que nem sempre são operados de forma consistente nas pontas por problemas que vão desde a dificuldade dos professores em enfrentar o tema (falta de formação?) até resistência das comunidades locais e mesmo interferência de grupos religiosos. Mesmo sendo o Brasil um Estado laico, sabe-se que a educação pública ofertada nas escolas nem sempre preza pela sua laicidade: escolas em que rezar faz parte do cotidiano dos alunos não são exceção e as aulas de religião, legalmente optativas, são em geral obrigatórias e propagam determinada religião. O tema, aliás, é objeto de ação no Supremo Tribunal Federal proposta pela Procuradoria Geral da República em 2010.
Grupos religiosos devem ter toda a liberdade de professar seus princípios e suas crenças, inclusive no que se refere a práticas sexuais; mas a interferência desses grupos em políticas públicas de educação integral em sexualidade prejudica toda a coletividade, ofendendo a um só tempo o direito de professar outras religiões (ou mesmo nenhuma) e a norma de laicidade estatal.
Não raro, grupos religiosos opõem-se à educação integral em sexualidade alegando que tratar destes temas muito cedo incentivaria o início precoce da vida sexual. Em contrapartida, estudos e recomendações de especialistas no tema (nacionais e internacionais) são unânimes em dizer que educação sexual contribui para postergar o início da vida sexual, e não o contrário.
Nesse cenário, é preciso ainda lembrar que hoje os jovens recebem informações não apenas das escolas e das famílias. A mídia, em sua multiplicidade de plataformas, oferece possibilidades infinitas de exploração de temas relacionados à sexualidade. A partir de uma busca simples no Google com a palavra “melancia” podemos chegar em vídeos pornôs em apenas três cliques. A mídia comercial também não fica atrás em termos de erotização. Ainda que o Brasil conte com um interessante sistema de classificação indicativa – que visa orientar os pais quanto aos conteúdos televisivos das diversas programações, informando se há cenas de sexo, violência e drogas – sabe-se que as crianças brasileiras assistem uma média de cinco horas de televisão diárias, nem sempre com supervisão parental. Supervisão que não ocorre em muitos casos por pura impossibilidade de ambos os pais que trabalham fora de casa o dia inteiro e não têm com quem ou onde deixar seus filhos. Nesse meio tempo, a chance de serem expostas a conteúdos com intensa conotação erótica não é baixa.
No Brasil, a média de início da vida sexual é por volta dos 13 anos. Cedo demais? Queiramos ou não, gostemos ou não, é um fato. Adolescentes são curiosos e se a informação não é apresentada de forma didática nas escolas, as emissoras de televisão se ocuparão em deseducar as crianças para esse tema. Há quem diga que hoje a internet provê informações sobre tudo. Verdade. Mas informação sozinha não faz mudança de comportamento e não será capaz de promover uma vivência sexual saudável e feliz para nossos jovens. Principalmente em um país onde o machismo é estruturante das bases sociais, onde o uso da camisinha é dificilmente negociado pelos jovens e cuja negociação é permeada de preconceitos: “é como chupar papel com bala”; “se você não tem outros parceiros, por que quer usar camisinha?”. Para as meninas, fica a difícil tarefa de fazer a negociação, como se o problema fosse só delas – percepção que, aliás, é incentivada pela maior rede de televisão do país em reality show de grande audiência. Para os meninos, sobram estereótipos, falta informação e abundam silêncios forçados.
A falta de discussão franca e aberta sobre essas questões no ambiente escolar, aliado ao bombardeio midiático e comercial sobre sexualidade, deixam o Brasil em um incômodo lugar: onde a sexualidade é exposta e vendida o tempo todo e cujas experiências são pautadas por estreitos padrões de gênero. O caminho para reverter esses padrões sociais tão ancestrais é longo e penoso, mas começar pela escola é sempre uma boa ideia. Que possamos seguir o exemplo do Reino Unido e do Canadá e promover aos jovens brasileiros a possibilidade de se empoderarem dos seus corpos e das suas escolhas.
* Saiba mais sobre a colunista Tamara Amoroso Gonçalves:
Olá, meu nome é Tamara. Também estou na Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc. Moro atualmente em Montreal, no Canadá. Sou advogada e mestra em Direitos Humanos. Desde o início da faculdade de direito me envolvi com temáticas relacionadas a direitos humanos e me apaixonei pelo direito da criança e do adolescente. Em meu primeiro estágio contribuí para a defesa técnica de adolescentes em conflito com a lei e tive contato com debates envolvendo questões de gênero. Nesse processo, descobri a importância de se repensar estereótipos e marcações de gênero desde a primeira infância. Em meu mestrado, focado em casos de violações de direitos das mulheres apresentadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ficou evidente a conexão entre ambos os temas: muitos dos casos de violações de direitos das mulheres contavam na verdade histórias de violências contra meninas. A partir de minha experiência no Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, compreendi melhor a necessidade de discutirmos na sociedade brasileira as relações entre consumo, infância e gênero, repensando os padrões consumistas e de gênero que vêm sendo impostos a todos e que limitam o desenvolvimento de uma sociedade mais igualitária e feliz.
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