Publicidade infantil: um novo tempo começa agora?
Quantas vezes pais e mães se deparam com estratégias publicitárias direcionadas a seus filhos todos os dias? São ações de marketing pensadas para atrair a atenção das crianças, com personagens famosos nas embalagens, ou com a associação de brinquedos que são apresentados como brindes.
Para muitos, caberia apenas aos pais definir o que as crianças devem consumir. Nessa visão o mercado poderia usar todo o seu arsenal para convencer adultos e também as crianças. Mas para muitas outras pessoas e organizações, é preciso priorizar o interesse da criança.
Há exatamente uma década o Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, discute o tema consumismo infantil reunindo entidades e atores de várias partes do Brasil. A Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc, surgiu a partir de um convite do Instituto Alana em 2013. Sua missão é ser uma Rede capaz de despertar a sociedade, especialmente a comunidade escolar e os que produzem conteúdo nas mídias, para as consequências do consumismo na infância.
O objetivo dos movimentos e organizações que têm na pauta a questão do consumismo infantil é repensar a exploração comercial da infância feita de forma cada vez mais intensa pelo mercado, pela indústria de alimentos e de produtos diversos, e pela mídia. Ao tratar a criança como um alvo, que pode comprar seus produtos e com isso ser um público muito lucrativo, empresas desrespeitam o artigo 227 da Constituição Federal que define a responsabilidade coletiva pelo cuidado com as crianças. Então, não cabe apenas aos pais cuidar de seus filhos. Cabe também ao Estado e ao mercado. Por mercado entendemos as indústrias de brinquedos, de biscoitos, de ovos de Páscoa, de jogos eletrônicos, os comerciantes, os publicitários, as agências de marketing e todos envolvidos na criação, divulgação e venda de produtos e serviços. O artigo 227 também ressalta que toda criança deve ser protegida de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Proteção contra a exploração
No dia 10 de março de 2016, o Superior Tribunal de Justiça, STJ, manteve a condenação dada pelo Ministério Público Estadual de São Paulo contra a campanha publicitária promovida pela Bauducco em 2007. A Ação Civil Pública foi resultado de uma denúncia feita pelo Instituto Alana. Na promoção, a empresa oferecia relógios inspirados em personagens infantis, caso o consumidor adquirisse cinco pacotes de biscoitos e pagasse mais cinco reais. Condenada pelo TJSP, a empresa recorreu então ao STJ. E a resposta veio em alto e bom som, apoiada por todos os ministros. O recurso especial foi relatado pelo ministro Humberto Martins, que manteve a decisão do tribunal paulista, por considerar que a campanha publicitária se trata de uma venda casada que “aproveita da ingenuidade das crianças”. O ministro Herman Benjamin foi enfático em seu discurso: “Temos publicidade abusiva duas vezes: por ser dirigida à criança e de produtos alimentícios. Não se trata de paternalismo sufocante nem moralismo demais, é o contrário: significa reconhecer que a autoridade para decidir sobre a dieta dos filhos é dos pais. E nenhuma empresa comercial e nem mesmo outras que não tenham interesse comercial direto, têm o direito constitucional ou legal assegurado de tolher a autoridade e bom senso dos pais. Este acórdão recoloca a autoridade nos pais”.
A decisão do STJ sobre a promoção do biscoito do personagem Shrek é apenas um caso diante de uma enxurrada de apelos que recaem todos os dias sobre nossas cabeças, “minando os esforços de pais e educadores”, como cita Susan Linn, escritora e estudiosa dos temas consumo e infância. E como competir com uma indústria bilionária? Não conseguimos competir. Por mais que as famílias se esforcem há uma grande rede de incentivo ao consumo infantil, que alimenta uma parte importante da economia e financia programação infantil na mídia mas que causa estresse familiar, prejuízos ao desenvolvimento das crianças e estabelece valores nada sustentáveis nem saudáveis. Será preciso procurar um outro caminho para financiar programação infantil e redirecionar a publicidade para quem tem condições de entender o seu recado, os adultos. Todo produto que hoje é anunciado para a criança pode ser anunciado para os adultos, que são as pessoas responsáveis pela compra.
Além da venda casada, o STJ considerou a publicidade abusiva por ser direcionada para crianças. Desde 1990, o Código de Defesa do Consumidor já proíbe “a publicidade que se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança”, em seu artigo 37. O desfecho do caso do biscoito do Shrek deu ânimo para os movimentos de defesa da infância. O tema já vinha sendo discutido desde 2001, com o PL5921, ainda em tramitação no Congresso, ou com a resolução Conanda 163 de 2014. Apesar do descaso das empresas que fazem uso da infância para vender seus produtos, o discurso dos ministros no dia 10 de março de 2016 renovou nossas esperanças de ver o fim da exploração comercial da infância no Brasil. Palmas para o ministro Herman Benjamin, a ministra Assussete Magalhães, o ministro Humberto Martins e
A diretora do Instituto Alana, Isabella Henriques comemora a decisão que é fruto de uma iniciativa do Projeto Criança e Consumo. Segundo ela, além de ser uma decisão que pode ser repetida para eventuais outros casos que cheguem a esse tribunal superior, certamente influenciará tribunais estaduais, juízes de primeira instância e quem mais tem autoridade para efetivamente fiscalizar ou coibir os abusos publicitários. “Não temos ainda o acórdão – o texto da decisão -, nem ela transitou em julgado, ou seja, ainda cabe algum recurso. Mas o fato é que o resultado de 5 X 0 e as falas dos votos lidos, bem como as manifestações verbais dos Ministros foram taxativas para mostrar que a sociedade foi ouvida”, explica Isabella.
A diretora do Alana reforça que, pela primeira vez, o tema da abusividade da publicidade voltada ao público infantil chegou a um tribunal superior e foi analisado em seu mérito. “A empresa perdeu o caso. Mas, mais importante do que isso, foi que a sociedade, mães, pais, famílias e as próprias crianças ganharam. Ganharam o respeito da mais alta corte do país, que julga discussões sobre leis federais. A criança esteve no centro da decisão, como absoluta prioridade da nação que é.”
A decisão marca um novo rumo para a comunicação no Brasil, no caso a publicidade, mas a sociedade espera que a infância seja prioridade também para os conteúdos da mídia com a manutenção da Classificação Indicativa, com a vinculação entre faixa etária e horário que aguarda julgamento no STF.
Foto: Flickr
Desirée Ruas – Rebrinc