O Enem e a publicidade infantil
Desirée Ruas é jornalista e pós-graduada em Educação Ambiental e Sustentabilidade. Coordenadora do Consciência e Consumo. Integrante da Rebrinc.
Texto publicado originalmente no blog Conversando sobre Adolescência
Publicidade infantil em questão no Brasil: esse foi o tema da redação do Enem 2014. Um texto jornalístico que discute se a publicidade infantil deve ser proibida no Brasil, um infográfico sobre a publicidade para crianças no mundo, e um outro texto sobre a criança como o consumidor do futuro serviram de base para as reflexões dos inscritos.
Felizmente, o assunto está cada vez mais em pauta, mas quantos candidatos do Exame Nacional do Ensino Médio já tinham pensado sobre o bombardeio publicitário que ocorre diariamente sobre crianças e adolescentes? Quantos sabiam da existência da resolução 163 do Conanda, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente? E qual o nível de conhecimento dos jovens sobre publicidade abusiva, categoria em que se enquadram os anúncios publicitários destinados às crianças?
Mais do que escrever um bom texto, com clareza, coerência, conhecimento da temática e apresentação de argumentos para defender um ponto de vista, a questão envolve um jogo de poderes que preocupa famílias e movimentos em defesa da infância. Quem tem poder nessa queda de braço? Quem anuncia nos veículos de comunicação? Quem domina o mercado editorial? Quem lucra com produtos licenciados, os famosos personagens nas embalagens de biscoitos e estampas de roupas e acessórios?
A publicação da resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conanda, aprovada de forma unânime na plenária do dia 13 de março de 2014, detalhou o que já está definido, desde 1990, no artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor. É abusiva e, portanto, ilegal toda e qualquer publicidade infantil já que ela “se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança”. Importante saber também que há em tramitação vários projetos que tratam do tema como reposta a demandas da sociedade. O primeiro projeto sobre o assunto na Câmara dos Deputados, e que ainda está em tramitação, foi proposto em 2001. Uma geração inteira nasceu, cresceu e deixou a infância sem que esse projeto fosse aprovado ou qualquer outro relacionado ao tema. Especialistas alertam e pais confirmam: mais do que vender produtos, a comunicação mercadológica na vida da criança está associada ao aumento da influência da alimentação não saudável e índices crescentes de obesidade, mudança de valores, materialismo, adultização infantil, erotização precoce, estresse familiar, dentre outros.
Alguns pontos que o estudante poderia ter usado em sua redação: a liberdade de expressão, alegação dos que são a favor da publicidade infantil, é um direito do indivíduo e não de empresas. Além disso, restrições legítimas podem acontecer para a defesa de outros direitos. E por que o Estado tem que interferir nessa questão? Tal interferência é necessária porque é responsabilidade de todos – famílias, Estado e sociedade – assegurar os direitos e proteger as crianças e os adolescentes, como define o artigo 227 da Constituição Federal, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Outra reflexão importante se refere à busca dos culpados pelo consumismo infantil. Os anúncios e seu incrível poder de convencimento “minam os esforços de pais e educadores”, como resume a escritora Susan Linn, em seu livro “Crianças do Consumo – A Infância Roubada”. O estímulo ao consumismo e o apelo feito por marcas e produtos sempre se utilizam da vulnerabilidade das crianças. Pais e mães se esforçam. Mas eles não têm como competir com o discurso da publicidade e da mídia. Muitos “nãos” são ditos diariamente, várias vezes por dia, mas o bombardeio que vem de todos os lados interfere na forma como as crianças entendem o mundo e dificulta a educação que pais e mães tentam dar a seus filhos. Todos sabemos que educar filhos é também educar para o consumo, mas não para o consumo que o mercado ensina: insustentável, sem ética e sem limites. Nós, pais e mães, educamos para o consumo, mas também para a paz, para a saúde, para a solidariedade, para o cuidado, para a sustentabilidade, para a vida. As famílias desejam sim proteger seus filhos, o que não significa que querem colocá-los em uma bolha, alheios ao mundo. Nós queremos mudar o mundo que temos para benefício de todos, mas principalmente de nossas crianças e adolescentes.
Todos aqueles que fazem parte de movimentos em defesa da infância e contra o consumismo infantil, assim como eu, ficamos pensando nas redações. O que nossos jovens redigiram sobre a publicidade infantil? Espero que muitos, ou alguns dos candidatos, tenham escrito: Querem vender produtos para serem usados pelas crianças? Então, façam comerciais para convencer os adultos. Utilizem argumentos para que os pais queiram comprar seus produtos e não personagens em um mundo de fantasia para seduzir crianças, como costumam fazer. Respeitem a resolução 163!