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O caso do menino Ítalo e a bifurcação do ECA: onde falhamos como sociedade?

O caso do menino Ítalo e a bifurcação do ECA: onde falhamos como sociedade?

Por Raquel Gutierrez de Azevedo* – Advogada, graduada em Direito, Pós-Graduanda em Direito Civil e Direito Processual Civil e integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo

Desde o dia dois de maio a sociedade lembrou que existe uma infância abandonada à sua própria sorte e, por consequência, infratora. Infelizmente, os discursos sobre o caso do assassinato do menino Ítalo têm o mesmo conteúdo daqueles que encontramos em discussões sobre a redução da maioridade penal. Esquecem da idade e da fragilidade da infância e os culpabilizam por sua situação, da qual são vítimas. Ouvimos mais uma vez do “cidadão de bem” o famoso “bandido bom é bandido morto”, não importa a sua idade.

Esse fato me levou a refletir mais uma vez sobre a dupla eficácia do Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA, que, apesar de trazer consigo a Doutrina da Proteção Integral e os princípios da Prioridade Absoluta, da Responsabilidade Tripartite e do Melhor Interesse da Criança, só atinge uma definição de infância. A outra, ainda parece estar sob a égide do nosso obsoleto Código de Menores, que literalmente dividia a infância entre crianças (sobre essas não especificava nada) e menores em situação irregular (aqueles já abandonados, em situação de risco e infratores).

Não pretendo entrar nos detalhes desse caso, nem sobre como os meninos se comportaram, se houve mais um extermínio policial (acho interessante citar o movimento “As últimas palavras dos jovens negros”, o qual, conforme o nome, mostra as últimas palavras de jovens negros assassinados por policiais) e muito menos sobre o histórico policial dos pais de Ítalo. Também não se trata de minimizar o roubo – ou demais crimes tipificados no direito penal e cometidos por crianças e adolescentes), mas sim incentivar uma reflexão sobre como nós, sociedade, falhamos com nosso terço de responsabilidade sobre essas crianças.

Primeiro esquecemos que, em sua maioria, elas não têm uma família estabilizada que possa dar-lhes o mínimo. Muito menos o Estado, que também é um dos culpados por essa situação. Não fazemos nada com crianças que não podem estudar, brincar, comer, e muito menos sonhar. Crianças que não têm garantidos seus direitos básicos como alimentação, saúde e educação e, tampouco, o direito de serem crianças.

Segundo, com a desumanização que fazemos com elas quando finalmente lembramos de sua existência – momento em que invadem nossa bolha social, cometendo algum ato infracional. Nesse momento, nos cegamos de ódio e transformamos vítimas sociais em bandidos, aceitando calados seu extermínio – ou até incentivamos. No Brasil não temos pena de morte – em hipótese legal -, nem após todo o procedimento para averiguar a culpa do acusado maior de idade, então, por que seria permitida a torto e a direito nas ruas, para aquele cidadão considerado como “outro”, já destituído de humanidade e por isso não detentor de direitos, mesmo ainda sendo uma criança?

Ao trazer para o Brasil a Doutrina da Proteção Integral, o ECA trouxe a todas as crianças a garantia de que teriam para si todos os direitos fundamentais dos adultos e, mais aqueles que fossem necessários para garantir o seu desenvolvimento sadio. Mesmo as medidas socioeducativas aplicadas aos adolescentes infratores têm como base a proteção e o melhor interesse da criança: visam reeducá-los, e não puni-los. Desta forma, não importa a raça ou condição social da criança, todas elas merecem o mesmo carinho, atenção e cuidado, não só dos pais, mas do Estado e da sociedade.

Como exemplo, o Artigo 3º do ECA diz “a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana […] assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”, ressaltando que não poderá ser feita “[…] discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem”.

Voltando nosso pensamento ao caso do menino Ítalo, é possível afirmar que a ele foram garantidos esses direitos? Ampliando a análise aos garotos como ele, eles têm esses direitos? É de conhecimento notório a fragilidade da educação pública brasileira, bem como a situação de miséria que muitas famílias vivem, e o desamparo vindo do Estado. Em termos econômicos, não se consegue garantir a dignidade mínima com nosso parco salário mínimo e a eventual ajuda do Bolsa Família. Como defender que essa infância tem a mesma proteção que é dada aos filhos com condições econômicas mais abastadas?

A lógica capitalista e a influência midiática para o consumo infantil operam de diversas formas conforme a estrutura socioeconômica da família. Há pais que podem comprar tudo o que os filhos desejam e não o ligam de fazer, outros gostariam que o marketing não fosse tão forte e possuem tempo para oferecer uma educação diferenciada. Outros se endividam para comprar o último modelo de brinquedo e se culpam por não terem tempo suficiente com os filhos, para brincar ou cuidar de uma alimentação mais equilibrada. Outros não possuem dinheiro nem para as necessidades mais básicas sendo que também foram negligenciados quando crianças. Todos são alcançados por constantes mensagens publicitárias incitando o consumo e acumulação de bens.

Ao olharmos – ou deixarmos de olhar – de maneira diferente para as crianças conforme sua origem econômica e racial, começamos a distingui-las e falhamos no nosso dever como sociedade de protegê-las. Só lembramos daquelas que já vêm sendo marginalizadas quando cruzam nossas vidas e cometem algum crime. Contudo, nesse momento esquecemos de sua condição de crianças em risco e desprotegidas, e todos os fatores socioculturais que as levaram ao cometimento do crime, tratando-as como perigosos marginais.

Explico: em todos os casos de atos infracionais cometidos por crianças ou adolescentes, o julgamento público vai em congruência à ideia de que se trata de um bandido incorrigível, e que seu tratamento deve ser como tal, e não como o previsto no ECA, visto frequentemente como ineficaz. Mas não exercemos a nossa empatia para entender o que levou uma vítima a cometer um crime.

Sim, são vítimas, e não se pode negar essa condição ao se analisar todo o contexto social. De um lado, temos a nossa infância inocente e protegida, com todas as garantias dadas pelo ECA concretizadas. Do outro, a infância marginal, a qual o Estado e sociedade negam saúde, educação, moradia, etc., além de apoio necessário aos pais. Não se trata de defender qualquer tipo de crime, mas de entender que no lugar daquela criança ou adolescente, que teve seus sonhos e brincadeiras mutilados, mas que ainda assim é assediada por nossa cultura capitalista e sua ênfase ao ter, você provavelmente agiria da mesma forma. O nosso sistema extremamente meritocrata não lhe dará espaço para crescer por méritos próprios, então, o que sobra é o mundo do crime. Não lhes garantimos nem a educação básica, mas somos hipócritas o suficiente para exigir que essas crianças vençam na vida por meio de trabalho, quando sabemos da hierarquia rígida do mundo adulto. Nossa meritocracia rouba-lhes as chances, então é o crime que lhes oferece acesso aos bens de consumo tão cobiçados.

Vale lembrar que a maioria dos adolescentes que cumprem medida educacional na Fundação Casa, o fazem por roubo (40%) ou tráfico de drogas (23%)*. Uma minoria comete crimes violentos e mesmo assim, a população clama por encarcerá-los em nossos presídios desumanos, concretizando a ineficácia de seus direitos.

Nós, como sociedade, fechamos os olhos a essa outra infância e lavamos as mãos para os abusos que sofrem, negando nossa parte na responsabilidade tripartite. Assumirmos nossa culpa no problema não acabará com a violência cometida contra ou por essas crianças, mas já é um vetor indicativo de mudanças, pois começaremos a discutir como corrigir o início do problema. Precisamos garantir a eficaz proteção integral a todas as crianças, e não aumentar sua marginalização, clamando penas e castigos para aquelas que “ousam” tirar direitos daqueles que lhes tiraram a infância.

 

Fonte das estatísticas aqui.

 

Imagem: Montagem – Reprodução

 

* Saiba mais sobre a colunista Raquel Gutierrez.

Colunista Rebrinc Raquel Gutierrez

Sou advogada e acabei de me formar. Tento acreditar que minha profissão é bem mais do que me cercar por papéis e processos. Me interesso por qualquer tema que envolva Direito de Crianças e Adolescentes, especialmente os que tratam de sociedade em rede e de consumo, adultização precoce e influência da mídia perante as crianças e seus padrões de comportamento – inclusive identidade de gênero. Espero ajudar na desconstrução dessa sociedade louca e individualista, tentando ao máximo dar prioridade absoluta e proteção integral às crianças e adolescentes, como concordamos em fazer ao promulgarmos nossa Constituição Federal.

Fale com a autora: contato@rebrinc.com.br

Texto feito especialmente para o site da Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc. Caso queira reproduzi-lo, pedimos que mencione a fonte e o autor, com link para o site. Ajude-nos a valorizar os autores e a divulgar o nosso trabalho pela infância.

 

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