Infância e superexposição: temos o direito?
Por Débora Figueiredo* – Graduada em Filosofia e mestre em Psicologia
A tirinha acima, de autoria de André Dahmer, leva-nos a uma reflexão interessante: quantos de nós não sentimos uma força quase irresistível que nos leva a querer capturar uma enorme quantidade de momentos de nossos pequenos? Sejam eles filhos, sobrinhos ou mesmo filhos de amigos: a câmera está sempre lá, apontada para que momentos triviais, engraçados ou até mesmo traumáticos sejam registrados. Esse impulso, por si só, poderia ser motivo de reflexão. Por que registrar tantos momentos? O que muda nas nossas vidas e nas vidas das crianças ter ou não essa quantidade de registros visuais? Damos conta de revisitar tudo isso em algum momento? Se esses registros visuais por acaso se perdem em nossos arquivos, como nos sentiremos? O que sentimos quando nos preocupamos em atentar para as câmeras e o que sentimos quando resolvemos simplesmente contemplar os momentos e registrá-los na memória? Acontece que nossa reflexão hoje vai mais além, porque não só nos detemos a registrar esses momentos, como a compartilhá-los na rede.
Estudar sobre a relação que se estabelece entre infância, consumo e tecnologia em nossa época abre um mundo de possibilidades que nem sempre são possíveis de serem investigadas em trabalhos acadêmicos de curta duração como em um mestrado. Dois anos e meio e cerca de 150 páginas são de uma limitação temporal e espacial arrebatadoras para quem quer se debruçar sobre essa temática.
No meu retorno aos escritos para a Rede Brasileira Infância e Consumo – Rebrinc, sinto uma necessidade imensa de falar sobre o que não pude (novamente, por limitação de tempo e espaço) tratar na dissertação. São inúmeras as questões que sinto que devem ser tratadas o quanto for possível para que possamos ter consciência de como tendemos a lidar com a vida imersa na rede.
Uma dessas questões que tanto me incomoda diz respeito ao modo como as imagens das crianças são compartilhadas na internet. Confesso que eu mesma me sinto desconfortável em levantá-la. Primeiro porque eu mesma sei o quanto já sorri com vídeos e fotos de crianças na internet. Segundo porque essa questão envolve a escolhas que pais, familiares e amigos costumam fazer em relação a seus filhos bem pequeninos, aqueles que ainda não falam ou que, se falam, não tem consciência dos riscos de suas escolhas na rede. A ideia aqui não é culpar os pais, mas tão somente levantar uma reflexão e, possivelmente, um debate construtivo sobre. Até porque não se trata de culpa, mas de como somos seduzidos a usar as redes sociais em um tempo em que as noções entre público e privado se confundem.
Bom, pensemos juntos sobre o primeiro ponto de dois que tratarei aqui. Muitos de nós costumamos questionar, por exemplo, o porquê de levarmos adiante a tradicional atitude de furarmos as orelhinhas das recém nascidas para que sejam, de imediato, reconhecidas como meninas. As meninas, a princípio, é que deveriam escolher se querem ou não que suas orelhas sejam furadas. Sendo assim, por que não costumamos questionar o modo como suas imagens (e aqui independentemente de serem meninas ou meninos) são publicadas na internet? Filmamos, fotografamos e compartilhamos seus partos, seus primeiros passos, seus micos, seus olhares, seus comportamentos diante do outro em uma fase em que estão ainda tropeçando, literalmente, sobre o mundo, as relações e nossos próprios sentimentos. Isso porque, como adultos, achamos esses momentos por vezes lindos, por vezes divertidos e muitas vezes até emocionantes. E se assim é, por que não mostrar ao mundo? A grande questão sobre esse ponto é: temos esse direito? Adquirimos esse direito por sermos pais ou tutores? Adquirimos esse direito por amá-los e tê-los em nossa guarda? Alguma vez levamos seriamente em consideração como esses pequenos um dia se sentirão diante de tamanha exposição? Será que o fato de um ou outro ou até mesmo a maioria gostar (devido a uma naturalização própria do nosso comportamento nas redes) faz com que automaticamente todos devam se sentir bem com suas imagens soltas em um ambiente em que, uma vez que recebe essas informações, jamais nos devolve de volta? Será que o fato de uma criança altamente familiarizada com suas telinhas pedir para um adulto que suas imagens sejam compartilhadas é motivo suficiente para que sejam? Levemos em conta que os arrependimentos são possíveis e os perigos são imensos? Esse último questionamento nos leva ao segundo ponto.
Enquanto escrevia minha dissertação e decidia sobre o que seria tratado ou não, acompanhei um fato assustador que me chamou atenção. Vários sites fizeram matérias falando sobre a procedência das imagens que povoam o imaginário de pedófilos. Uma quantidade absurda de imagens de crianças que vai parar em sites de pedofilia é retirada justamente das redes sociais de familiares e amigos. Obviamente a culpa disso não é, em nenhuma instância, das vítimas (crianças e pais). Mas uma coisa é fato: na rede, não temos controle nenhum daquilo que é feito com nossos dados. Na maioria das vezes, não temos como nos defender (e defender nossas crianças) daquilo que nem mesmo sabemos que está acontecendo. O que fazer diante disso para que possamos nos proteger? A rede, que normalmente temos contato e em que nos deparamos com tanta imundície em termos de violência e assédio, não é nem de longe aquilo que de pior a internet pode esconder em suas profundezas. Diante disso, a reflexão se faz patente e urgente.
Repito que, aqui, não pretendo – em hipótese alguma – dizer o que deve ou não ser feito, ditando regras de como cada um deve lidar com suas crianças, mas, sobretudo, levantar questionamentos que nos auxiliem a reavaliar o modo como lidamos com a superexposição de imagens dos pequenos, levando em consideração tanto que essas crianças podem vir a ter seus próprios pensamentos e sentimentos acerca dessa exposição como a existência de sérios riscos com o que pode acontecer com as imagens quando compartilhadas na rede.
Lembremos que, diante da nossa relação com um mundo com tantas tecnologias da informação desenvolvidas e popularizadas, é importante que nos detenhamos a refletir, criticar e construir cada vez melhores formas de lidar com essa realidade. Só assim podemos aproveitar o melhor que ela pode nos oferecer, sem que venhamos a cair numa ingenuidade de achar que tudo deve ser naturalizado e aceitado sem reflexão e questionamentos. Afinal, é exatamente isso que aqueles que dominam todas essas tecnologias querem: que queiramos consumi-las freneticamente sem que tenhamos tempo ou disposição para pensar sobre o que, afinal, em benefício nosso, deve ser mantido em relação a elas e o que deve ser avaliado e modificado.
Pensemos!
Caso se interessem pela temática da minha dissertação, “Playground virtual e indústria cultural: um estudo frankfurtiano acerca do consumo das novas tecnologias na infância”, segue o link para acesso: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/24605 “
* Saiba mais sobre a colunista Débora Figueiredo:
Possuo um nome que faz referência a um bichinho e uma super árvore: Débora, que significa abelha, em hebraico; e Figueiredo, que faz referência às figueiras. Amo a natureza, embora viva numa metrópole lotada de obras, carros e prédios: Fortaleza, tão linda quanto frágil. Sou graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará e fiz meu mestrado em Psicologia com o intuito de entender um pouco sobre as consequências que podem surgir a partir do contato dos pequenos com as novas tecnologias. Antes de ingressar no mestrado, fui professora de Filosofia por três anos em uma escola pública militar e foi essa experiência que fez com que eu despertasse interesse por temas como infância, consumo e novas tecnologias. Sou fruto de uma infância sem hambúrgueres, brindes, cinema e brinquedos em excesso, mas com muita rua, esconde-esconde, pega-pega e amarelinha. Eu também faço parte da Rebrinc e espero poder continuar contribuindo e aprendendo cada vez mais com a Rede.
Fale com a autora: contato@rebrinc.com.br
Texto feito especialmente para o site da Rede Brasileira Infância e Consumo, Rebrinc. Caso queira reproduzi-lo, pedimos que mencione a fonte e o autor, com link para o site. Ajude-nos a valorizar os autores e a divulgar o nosso trabalho pela infância.