Em defesa da redução: não da maioridade, mas da comercialização da juventude
Por Caio Fábio Sampaio Porto – Graduando em Ciências Sociais pela UnB
Em tempos sombrios como o nosso, onde retrocessos inacreditáveis são promovidos por aqueles que deveriam representar a vontade do povo brasileiro, a pauta da redução da maioridade penal é certamente a que apresenta o quadro mais dramático de uma tragédia anunciada. O Legislativo mais retrógrado já eleito no Brasil em décadas não tardou a mostrar suas garras e, em pouco mais de sete meses de legislatura, já conseguiu ferir quase que mortalmente a democracia brasileira, atingindo-a onde se mostra mais vulnerável: na juventude dita ‘delinquente’, majoritariamente negra, pobre e com pouco estudo, a quem qualquer forma de inclusão social foi reiteradamente negada ao longo de nossa história.
Ambos os lados desta batalha política acerca da redução da maioridade costumam focar tão somente em dados estatísticos, tendo em vista a credibilidade que as pessoas costumam dar a esse tipo de informação. Essa forma de avaliação, porém, é reducionista, incapaz de produzir um entendimento real da questão. Muito mais importante do que contar quantos jovens cometem crimes em relação aos adultos, a partir de uma definição arbitrária do que é ser jovem – ser maior de 16, 18, 21, a idade que for – é tentar compreender o porquê da juventude fazer o que faz. Reparem: em meses de brigas, nossos líderes conversaram com powerpoints, com censos demográficos, mas pouco ou nada ouviram daqueles que realmente importam: os menores de idade.
Por muito tempo, no Brasil, era possível explicar os crimes cometidos por menores em sua quase totalidade a partir de fenômenos como a miséria crônica de grandes camadas da população. Os pequenos furtos, que têm por objetivo a mera reprodução da própria vida do menor infrator e de sua família, têm motivos bastante compreensíveis. Essa visão, entretanto, está cada vez mais ultrapassada. Não que o tipo de crime tenha mudado como querem nos fazer crer os programas policialescos de televisão, que clamam há anos pelo sangue de todo um grupo social por causa de um ou outro que comete um crime mais grave: o que mudou foi a motivação para os mesmos crimes. No Brasil de hoje, não se rouba ou se trafica tão somente para sobreviver, mas também – e cada vez mais principalmente – para viver bem.
Mas o que é viver bem? No sentido empregado pela mídia e repetido à exaustão como um mantra para seduzir os consumidores, viver bem é manter um padrão de consumo condizente com aquilo que se impõe, com uma força cada vez mais assustadora, aos jovens, principalmente os mais pobres, marcados pela necessidade de aceitação social e, por isso mesmo, mais suscetíveis ao apelo do mercado, que vende sonhos em forma de mercadoria, inclusão em forma de marcas famosas e autoafirmação em forma de preços estratosféricos. Os jovens mais pobres são, portanto, duplamente atingidos por esse efeito, mas não são os únicos. Isso explica a razão pela qual cada vez mais jovens de classe média – que, em tese, não precisariam cometer crime algum – entram para a estatística dos “menores infratores”, muito embora nenhum Datena peça o sangue destes, por motivos óbvios.
O surgimento da música de “ostentação” a partir dos gêneros mais populares da música brasileira, como o forró, o sertanejo e o funk, expressa de maneira dramática esse fenômeno. As músicas saem de seus temas originais, sejam eles bons ou maus, para exprimir tão somente o quão rico, influente e aceito socialmente determinado cantor é, riqueza essa que ele demonstra a partir das mercadorias que possui. É cada vez mais comum que se citem marcas famosas nessas músicas, que conseguem ser mais eficientes que o melhor dos jingles, uma vez que estas não são produzidas pelas empresas, mas sim pelos próprios consumidores.
A comercialização da vida em sociedade e a precificação do respeito ao indivíduo em sua relação com o grupo a que pertence ou quer pertencer acaba por produzir efeitos dos mais terríveis. Assim, a partir de contradições históricas de nosso sistema societário, o mercado atribui a seus produtos uma significação nova, convencendo os clientes a comprar não pela qualidade ou pelo preço camarada, mas sim por tudo aquilo que determinada marca representa enquanto símbolo de sucesso. Seduzidos, ansiando por inclusão e quase sempre impossibilitados de consumir tudo o que gostariam, esses jovens estão dispostos a qualquer coisa para adotar o estilo “ostentação” de vida.
Os que conseguem atingir esse padrão “ostentam” e são bem vistos por seus pares que passam, naturalmente, a também querer ostentar cada vez mais e cada vez mais cedo, gerando essa ânsia consumista até mesmo em crianças que mal entraram na puberdade, como é o caso das várias e vários artistas mirins que surgiram recentemente. E é com essa propaganda gratuita de seus produtos, promovida pelas próprias vítimas desse esquema, que o mercado, tal como um feixe de luz numa sala de espelhos, gera uma reação em cadeia de grandes proporções a partir de um simples incentivo, fomentando a criminalidade num meio onde raramente é possível bancar a “ostentação” de outra forma. É aqui que o ladrão vira mocinho e que a criança vira um “monstro”. Por isso, mais importante que reduzir a maioridade penal, meus caros, é reduzir a comercialização de nossos jovens.
Foto: Amanhecer contra a Redução
Publicado em 20/07/2015
* Saiba mais sobre o colunista Caio Sampaio
Um cara que pensava diferente em um Colégio Militar, incapaz de dizer amém a qualquer coisa. Uma criança que mal ganhava brinquedos e a quem nunca ninguém negou um livro, por mais difícil que ele fosse. Um menino que não podia ver uma banca de revista e já queria levar ela toda pra casa. Quando sua mãe o queria quieto, comprava pra ele uma pilha de revistinhas, não um eletrônico qualquer. Uma pessoa que aos nove anos leu por puro acaso o seu primeiro livro sério, Revolução dos Bichos, fazendo surgir um vício que nunca abandonou. Criança inconveniente que era, logo desenvolveu um grande amor por História, só piorando a partir daí. Hoje cursa Ciências Sociais na Universidade de Brasília, onde pode ser chato à vontade.
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