Crianças negras, bonecas brancas?
Por Rita de Cássia – Graduanda em Letras na Universidade Federal do Ceará
Havia uma aglomeração no centro da igreja. Eram umas seis ou setes mulheres olhando algo envolto em panos, e frases como: “Até que não é tão feio”, “É uma gracinha, mas não é bonito”, “É o que temos”, saiam da roda de conversa. Eu, que era uma criança curiosa, fui olhar, corri até a aba de uma das senhoras e falei “Deixa eu ver! Deixa eu ver!” Até que ela abaixou os panos e dentre eles estava um boneco de uma criança negra.
Eu sou negra, e como grande parte das crianças negras, não queria ser.
Minha mãe me proporcionou uma infância maravilhosa, cheia de bonecas, coleção dos filmes da Barbie, dos DVD’s da Xuxa, filmes da Disney… Eu amava todos. No entanto, quando ia dormir, rezava a Deus para que acordasse com cabelos louros frondosos, olhos azuis e a pele branca. Isso era natural porque todas as princesas, a rainha dos baixinhos e a beleza que era louvada pelo mundo inteiro em nada pareciam comigo.
Brincar de casinha com as minhas bonecas significava que a minha personagem seria uma boneca com o estereótipo branco/europeu, mas era exatamente o que eu queria que fosse, até porque uma boneca negra seria “uma gracinha, mas não seria bonita”.
Crescer com a ideia de que o seu corpo, a cor da sua pele, o seu cabelo não são bonitos afeta a sua vida por inteiro. Parecem ser apenas bonecas, parecem ser apenas filmes infantis dos quais esses brinquedos são retirados, mas a partir do momento que todos os filmes e seus brinquedos representam um único corpo, cor de pele, cabelo, cria-se um padrão de beleza que as crianças que consomem são afetadas diretamente. A infância é um momento de formação de inúmeros conceitos, que são levados para a vida, são enraizados na vida. É na infância que vemos que nós, negras, não somos bonitas como a Barbie, e é a partir da nossa adolescência que somos apagadas, esbranquiçadas e marginalizadas, pois não fazemos parte do padrão imposto desde o nosso nascimento, ao recebermos a nossa primeira boneca de presente no berçário.
Onde está a identidade negra na infância? Onde está a representatividade negra em nossos brinquedos? Quem vai fazer a minha personagem na casinha? Como vou ser chamada de “gracinha e bonita” se nem vista sou?
Eu sou negra, o meu desejo é que a maioria das mulheres, assim como eu, amem ser.
Experimente. Vá ao shopping, entre numa loja de departamento, entre numa loja de brinquedos. Quantas bonecas negras você vê por lá? Quantos materiais escolares com personagens negros você encontra lá? Ultimamente, uma série de empresas tem adotado a política de abraçar o discurso das minorias. Não sejamos ingênuos. A mesma marca que faz uma boneca negra, reproduz centenas de milhares de bonecas brancas porque são elas as que vendem mais. E por que são as que vendem mais? Seria porque existem mais brancos do que negros no mundo? Não. Acontece que grande parte das atrizes influentes, das líderes de Estado influentes e das mulheres na política são brancas. Quando há uma negra, um branco piadista ousa comparar com a “tia do cafezinho”. Desde quando a “tia do cafezinho” passou a ser um insulto?
As grandes marcas – e é bom que você tenha plena consciência disso – contribuem com essa lógica. Muitos dos brinquedos licenciados desde a década de 80 já surgiram junto ou mesmo antes que seus desenhos animados, a exemplo de He-Man. A Xuxa, acredite, não foi parar lá por acaso. A Angélica também não. A Eliana menos ainda. As empresas que usaram a imagem dessas apresentadoras para fabricar brinquedos sabiam o que estavam fazendo. Pense bem. Antes de colaborar com os grandes donos da indústria cultural que, pasmem, só estão interessados nos lucros que podem gerar (mesmo que isso signifique fazer uma ou duas bonecas negras, algumas com dois ou três números a mais que o padrão Barbie ou com alguma deficiência física), reflita um pouco. Aquelas bonecas, fabricadas em massa para milhares de outras crianças, perdem no quesito identidade.
Quer uma solução? Procure na sua cidade mulheres que façam bonecas negras. Peça que a roupinha seja feita com a cor preferida da sua filha, mostre a importância de ter consigo uma boneca que se parece com ela. Deixe que ela solte a imaginação e se identifique de forma real com uma menininha de pano feita com todo amor para acompanhá-la na infância. Vem aí um documentário chamado “Parece comigo”. Pais e mães, fiquem atentos. Assistam quando for lançado. Esse tema de extrema importância para a formação de nossas crianças. Que as próximas gerações de meninas negras não passem pelo que eu passei.
Imagem: Criação Socorro Cavalcante (Memórias de Algodão)