Casa de criança: conversas na quarentena
Por Cristina Braga – Educadora integrativa e integrante da Rebrinc
Quantas horas por dia sua criança passava fora de casa, antes da quarentena? E você? Na perspectiva de uma educação integrativa, a casa está relacionada com o nosso eu, com o nosso interior. É um saber ancestral que carregávamos e que no meio do caminho deu lugar a uma funcionalidade excessiva. Essa quarentena trouxe muitos desafios, mas também valiosas oportunidades. Talvez, a maior delas seja justamente a de reconexão com a casa, com o lar de forma mais profunda. E isso estende-se, obviamente, às crianças.
De uma forma geral, a maior parte das crianças estava em escolas, creches ou espaços lúdicos em tempo integral. E, aos finais de semana, na casa dos avós ou qualquer outro local fora de casa. Estávamos tão imersos nas demandas do dia a dia e metas de produtividade que, sem percebermos, havia uma criança crescendo longe da própria habitação. E agora elas estão sedentas por entenderem a lógica da casa e como os adultos que nela habitam lidam com os objetos, com as necessidades, com as tarefas do lar em seu cotidiano.
Estava observando as paredes da nossa casa de brincar e sentindo as memórias deixadas pelas crianças através de suas grafias em cada cantinho. É encantadora a forma como nossos filhotes registram suas percepções de mundo. Uma necessidade anímica de imprimir nossa identidade nas superfícies! Lembrei-me também do pânico de paredes riscadas, da casa “bagunçada”, enfim, do lar habitado pela infância.
A expressão “lugar de criança é na escola” fincou raízes tão profundas que até a casa parece espaço inapropriado para a meninada. Importante entender que ser humano filhote reconhece ambientes brincado, subindo, escalando, registrando sua identidade. Isso significa que o esperado, quando se tem crianças em casa (em especial as menores), é que queiram subir nos móveis, abrir gavetas, desenhar nas superfícies, como forma de se apropriaram do espaço e expressarem sua natureza curiosa e exploradora! Inserir a criança nas conversas cabíveis à idade dela e permitir que ela cuide (como conseguir) dos pequenos espaços da casa são caminhos possíveis para a harmonização da criança com o ambiente. Claro que não é fácil, principalmente porque a nossa relação adulta com a casa também ganhou tônicas demasiado funcionais. Em especial a nossa, enquanto mulheres (a velha e péssima sobrecarga!).
Mas, e se buscarmos por conexões mais amorosas com os objetos, com a rotina, atuando e sentindo-nos parte do espaço? Menos funcional, mais anímica! A criança tende a observar como nos relacionamos com o mundo repetindo nossos gestos, emanando energia similar à nossa em relação ao ambiente. Talvez o pânico da “parede desenhada” não encontre mais acesso em nossas vidas. Talvez a gente passe a sentir o significado de leveza. Talvez! Apenas sinto que o caminho de amorosidade com a casa também é expressado nos gestos da criança. Não há parede limpa no mundo que supere o sentimento de pertencer a um verdadeiro Lar.
Publicado em 13 de maio de 2020
Arte-educadora integrativa, brincadora, estudiosa das infâncias. Idealizadora do Instituto O Pequeno Pajé, organização dedicada à pesquisa e estímulo do brincar como caminho para o autodesenvolvimento. Idealizadora e diretora da Passarinho Casa de Brincar – Núcleo de acolhimento às culturas da infância e do brincar para crianças e adultos. Autora do livro infantil “O cubo azul gigante”, primeiro da série “Arte em Contos – Arte Contemporânea para Crianças”. Pesquisa espiritualidade (não religiosa) e infância e o desenvolvimento da alma humana e sua expressão no brincar. (@cristinabraga.educar)