A criança algemada e a indignação seletiva da mídia brasileira
Por Caio Fábio Sampaio Porto* – Graduando em Ciências Sociais pela UnB
Casos de violência policial são bastante comuns no Brasil, assim como casos de violência contra crianças e adolescentes. Em um país como o nosso, de volumosa população carcerária e índices de mortalidade absurdos entre os jovens – principalmente os de origem mais humilde – poucas coisas chamam mais a atenção de quem se debruça por sobre esse tema do que o fato de que a população em geral não só não se sensibiliza com esse quadro dramático como, inclusive, tem eleito cada vez mais políticos que levantam a sangrenta bandeira da repressão, dos “direitos humanos para humanos direitos”.
Nunca tivemos, em nossa história democrática, um congresso tão conservador como o que hoje legisla em Brasília. Esse crescimento, que certamente não se restringe à esfera nacional da política brasileira, tem ganhado força em todas as esferas governamentais. Não são poucos os apresentadores de televisão, pastores, empresários e militares que se elegem ou tentam se eleger levantando a pauta da morte e da bala nesse país. Esse processo de radicalização, de institucionalização do ódio e da barbárie se apresenta, infelizmente, como algo quase que irreversível.
Se há alguém a se culpar por esse desastre, certamente são os grandes meios de comunicação, que exercem sua hegemonia da forma mais covarde possível. Em uníssono, as vozes dos estúdios, as letras dos jornais e as ondas das rádios sufocam a frágil verdade que os jovens brasileiros carregam em cada uma de suas cicatrizes e certidões de óbito. Afinal, pouco importa a idade do “vagabundo” no Brasil. E mesmo que a criança ou adolescente não cometa delito algum, estará sempre vulnerável a sofrer violências, uma vez que espancamento também é educação na cabeça de muitos brasileiros, a ponto de precisarmos de uma lei, a “lei da palmada”, para coibir tamanha barbaridade.
Considerando tudo isso, é compreensível que eu tenha me surpreendido com a chamada do “Jornal Hoje” que foi ao ar no dia 04/08/15. A apresentadora do programa falava, se não me falha a memória, de um “ato de violência absurdo cometido por um policial contra uma criança”. Nenhuma novidade, em se tratando de Brasil, é claro. O que me surpreendeu, porém, foi a forma como o fato foi noticiado. Finalmente algum veículo de comunicação se colocando a favor dos direitos das crianças! Resolvi, então, esperar a tal matéria passar.
Ela tratava do recente caso de violência policial que viralizou nas redes sociais. O vídeo de um homem algemando por quinze minutos uma criança de oito anos nos Estados Unidos causou uma justa indignação na opinião pública mundial. O garoto, por ter os punhos finos demais para caber nas algemas, ficou preso pelos braços, numa posição que lembra, na melhor das hipóteses, uma câmara de tortura da Inquisição. A reportagem informou que a criança, portadora de transtorno de déficit de atenção e de hiperatividade, havia sido algemada devido a seu comportamento “inadequado” e que o mesmo homem já havia feito algo semelhante com outra criança da mesma escola, uma garota de nove anos também hiperativa. Não foi o ocorrido, entretanto, que me surpreendeu, mas sim a forma como ele foi tratado pela mídia.
O caso é realmente absurdo e merece ser tratado como tal, mas a pergunta que faço é: por que tantos outros casos, abundantes no Brasil, são solenemente ignorados ou mesmo glorificados pela grande mídia brasileira? Num país onde deputados têm a coragem de falar em aborto de crianças com “genes criminosos”, onde se quer reduzir a maioridade penal a, onde a pena de morte já existe e é aplicada todos os dias e policiais sanguinários são elevadas à condição de heróis diariamente por programas de televisão que semeiam sangue para colher dinheiro e votos, a indignação com um caso de violência dessa natureza simplesmente não faz sentido.
Se considerarmos a conivência desses veículos com tantos desmandos, essa notícia não faz sentido algum. Alguns dirão que a comparação não cabe, pois essa era uma criança “de bem”, que não cometeu crime algum, como se nossos policiais não matassem garotos tão inocentes como esse todos os dias. Além do mais, o policial poderia alegar que estava “educando” a criança com aquelas algemas, como diriam tantos pais e jornalistas, indignados com a intromissão do Estado na sua forma de educar por meio de surras. O que é uma palmadinha, uma algemazinha? “Molda caráter”, não é? E os transtornos dos quais a criança padecia? “Frescura”? Ou será que esse é o tipo de coisa para o qual já se nasce biologicamente programado? Está no sangue, nos “genes ruins”, como sugeriu o deputado brasileiro? Será que o Datena pediria o aborto de um filho da Angélica com o Luciano Huck que fosse diagnosticado no útero com hiperatividade ou “tendência à vagabundagem”, se isso possível fosse?
O fato é que a indignação seletiva da mídia brasileira reflete seus próprios preconceitos e anacronismos. Uma mídia que chora ao ver uma criança norte-americana, branca e de classe média algemada, mas se cala diante do espancamento arbitrário de jovens brasileiros e dá razão a quem amarra a um poste uma vida sem roupa nem dignidade merece ser tratada pelos piores adjetivos. Ou alguém perguntou aos jovens espancados por crimes que não cometeram se eles tinham déficit de atenção?
Não é pelo fato de a mídia não dar a menor importância para a vida de quem realmente apanha e sofre nesse país em troca de audiência que essas vidas não têm valor. Num sistema que impõe por meio de seus canais de comunicação uma série de padrões de consumo inalcançáveis para a maioria das pessoas e que, por essa e por outras vias, nega ao jovem marginalizado o direito de se sentir e de efetivamente ser parte de sua própria sociedade, tanto o crescimento da criminalidade nessa faixa etária é compreensível como a desumanização dessas pessoas no discurso da grande mídia é repugnante. Pois na verdade não importa se se trata de uma criança do Kentucky ou da Maré, se o policial fala inglês ou português, se a surra foi dada por parentes próximos ou se a vítima de violência cometeu um crime, tem algum transtorno mental ou falou de boca cheia: agressão não deixa de ser agressão, absurdo não deixa de ser absurdo, criança não deixa de ser criança e gente não deixa de ser gente por causa disso.
Ao fim da reportagem, a âncora do telejornal, Sandra Annenberg, expressou sua tristeza com o ocorrido nos Estados Unidos: – Certamente não é esse o tratamento a ser dado a esse tipo de criança, né, que precisa de cuidado e muito carinho, disse ela.
Acontece, Sandra, que esse não é o tratamento a ser dado a tipo nenhum de criança ou jovem. Todos merecem cuidados e carinho. Todos merecem ser tratados, se não com carinho, pelo menos como seres humanos.
A correspondente nos Estados Unidos, Lília Teles, também demonstrou estar chocada com o fato que estava noticiando. Ninguém nega, é claro, que o caso realmente é chocante e deve ser repudiado. Mais chocante que isso, porém, é a pouca repercussão, nessa mesma mídia, do relatório divulgado recentemente pela Anistia Internacional sobre a violência policial no Brasil e o extermínio sistemático de jovens pobres, negros e periféricos que tal matança promove. Mais uma vez, de forma decepcionantemente previsível, a grande mídia deixou cair a máscara da isenção e pureza de ideais, mostrando sua verdadeira face – branca, aristocrática, hipócrita e sanguinária. Sanguinária, entretanto, apenas quando o sangue que corre não é nobre, estrangeiro nem de grandes sobrenomes.
Imagem: reprodução TV
* Saiba mais sobre o colunista Caio Sampaio
Um cara que pensava diferente em um Colégio Militar, incapaz de dizer amém a qualquer coisa. Uma criança que mal ganhava brinquedos e a quem nunca ninguém negou um livro, por mais difícil que ele fosse. Um menino que não podia ver uma banca de revista e já queria levar ela toda pra casa. Quando sua mãe o queria quieto, comprava pra ele uma pilha de revistinhas, não um eletrônico qualquer. Uma pessoa que aos nove anos leu por puro acaso o seu primeiro livro sério, Revolução dos Bichos, fazendo surgir um vício que nunca abandonou. Criança inconveniente que era, logo desenvolveu um grande amor por História, só piorando a partir daí. Hoje cursa Ciências Sociais na Universidade de Brasília, onde pode ser chato à vontade.
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