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O perigo do discurso classista, elitista e higienista na desconstrução da sociedade sexista e patriarcal

O perigo do discurso classista, elitista e higienista na desconstrução da sociedade sexista e patriarcal

 

Por Lívia Wolffenbüttel – Integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo

 

Não há como ficar indiferente ao fato das crianças serem historicamente tratadas como inferiores e invisíveis, ainda que sejam aqueles seres em formação que mais precisam de cuidado e proteção. Desnecessário lembrar que todos nós passamos por essa fase e que se hoje estamos aqui lendo esse texto, é porque conseguimos passar por essa preliminar da vida e sobrevivemos ao assustador número de 16 mil crianças que morrem diariamente no mundo¹.

O Estatuto da Criança e do Adolescente foi criado no Brasil somente em 1990, e ainda que tenhamos sido o primeiro país a consagrar os princípios da Convenção sobre os Direitos da Criança estabelecidos pela Assembleia Geral das Nações Unidas, há que se concordar que são direitos muito jovens e que ainda não tivemos o tempo necessário para enraizar tais princípios com o nosso dia a dia. Entendemos racionalmente que as crianças devam ter direitos, mas ainda não estamos completamente prontos para dividir o nosso próprio espaço com eles.

Entendamos como “nosso espaço” aquele que conquistamos através do trabalho ou de conquistas de direitos. O meu espaço e o meu direito individual podem ter origem natural ou jurídica e estão fortemente ligados aos direitos de liberdade, igualdade e fraternidade, difundidos pela famosa revolução que impactou o mundo social, econômica e politicamente, mas que também teve seus próprios conceitos deturpados desde 1789.

Ao procurarmos uma definição simplista de Capitalismo, encontramos como sendo “um sistema baseado na propriedade privada”. Esse mesmo sistema que nos garante o direito à liberdade, à vida e à propriedade é aquele que acabou inserindo mulheres e crianças na sua base de exploração. O início do bradar dos direitos das mulheres aconteceu na época do bradar dos direitos postulados pelos revolucionários franceses, e ainda que não represente o maior passo dado no movimento feminista, há que se reconhecer que desde o século passado há uma tentativa de igualar o gênero masculino do gênero feminino.

Surge então o questionamento que ensejou a minha reflexão, em que momento histórico vemos surgir como prioridade o reconhecimento dos direitos e da importância da criança? Até que ponto não estamos reproduzindo os fundamentos do próprio discurso machista e patriarcal ao objetificar as crianças e retirar-lhes o valor e a condição de seres humanos que lhes são inerentes?

A indústria e a agricultura contaram com mão de obra barata e infantil durante muito tempo, apenas em 1891 se estipulou a idade de 12 anos como mínima para trabalhar (sim, DOZE anos). Com o surgimento das lutas sociais no Brasil, aos poucos aboliram o trabalho noturno das mulheres e restringiram o trabalho infantil, mas ainda levou muito tempo para que o sistema que prioriza o capital em detrimento do social passasse a enxergar as crianças sob uma ótica mais humana.

Infelizmente, o início do olhar voltado para a criança não se deu através do afeto, uma vez que procuravam assistir crianças em situação irregular, geralmente abandonadas, em situação de risco, infratores e carentes. Ainda não era possível entender que a parcela da população mais vulnerável precisa de inclusão ao invés de correção, precisa ser visível ao invés de ser silenciada e trancafiada em internatos.

Não é à toa que em 2016 precisamos ensinar aos pais a “abaixarem-se para falar com seus filhos olhando nos olhos”, e me parece inconcebível que adultos dotados das mais avançadas capacidades cognitivas não entendam a sua própria diferença de tamanho físico em relação às crianças. Crianças não são adultos em miniatura, mas são seres humanos em formação e desenvolvimento. Será tão difícil entender isso? Será que um dia nos envergonharemos da nossa atitude perante as crianças como nos envergonhamos de outros feitos históricos de discriminação e exploração de outros seres humanos?

Bastava para resumir essa reflexão reproduzir os artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente, mas ainda estamos vivendo um estágio em que se faz necessário discorrer acerca de determinados pontos para que seja ilustrada a importância do tema. O Estatuto está disponível gratuitamente para todos, inclusive para as famílias mais privilegiadas que têm o dever de tornar a compreensão desses princípios mais acessível às famílias mais carentes.

Quando o estatuto diz que são consideradas crianças as pessoas de até doze anos de idade e adolescentes aquelas entre doze e dezoito anos de idade, subentende-se que criança não é mercado consumidor, criança não é objeto de desejo sexual e criança não é mão de obra. A exploração do menor como consumidor em potencial e a hipersexualização das crianças estão intimamente relacionadas à incapacidade de entendermos o parágrafo mais simples do Estatuto que visa protegê-los.

As crianças são invisíveis perante a sociedade e perante a família, a quem deveria caber assegurar o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à dignidade e ao respeito entre outros direitos fundamentais de prioridade absoluta. Quando o Estatuto garante que nenhuma criança deva ser objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, deve-se sim entender que a inclusão do menor no convívio em sociedade faz parte da construção do caráter e dos valores dessas pessoas em desenvolvimento.

Nenhum movimento deve silenciar outro, sob pena de projetar a opressão sofrida naquelas pessoinhas mais vulneráveis à crueldade humana. Nenhum direito de decidir sobre a própria vida deve se sobrepor ao direito de respeitar a vida do outro e de conviver em sociedade, ainda que o direito individual acabe sendo prejudicado.

Enquanto encaminho o final dessa minha reflexão, sinto-me no dever de reconhecer os privilégios que me foram dados e que me tornam mais responsável por desconstruir tais verdades a fim de que se beneficiem aqueles que não gozam das mesmas vantagens que eu.

Escrevo como mulher, branca, cisgênero, classe média, mãe aos 20 anos, empresária do ramo da educação e proveniente de uma família que sempre me deu suporte e condições para o meu desenvolvimento. Quando sinto a necessidade de trazer as questões que levantei aqui, faço pensando em todas as outras mulheres que não tiveram acesso ao que eu tive. Enquanto sinto a garganta apertada por ser minimamente discriminada ao conviver com meu filho numa sociedade que quer ser livre de crianças, tenho o dever de imaginar como seria a minha vida se eu estivesse em uma condição completamente diferente.

Nem todas as mães podem escolher ter ou não um filho, nem todas as mães engravidaram pelo sexo consensual, nem todas as mães podem sair de casa sem ser violentadas pelo marido, pelo pai, pela mãe, pela comunidade e pela  sociedade. Nem todas as mães podem ser mulheres e muitas não podem gritar por direitos, nem o direito de ser mulher.

Cabe a nós silenciar outras mulheres e ditar onde e como elas poderão conviver com seus filhos, ainda que tê-los não tenha sido um privilégio cuja decisão se deu de forma racional e também emocional? Cabe a nós impedir que as crianças convivam com seus pais nas poucas horas que restam quando as 8 horas de jornada de trabalho findam e ainda são divididas entre as horas de deslocamento de e para o local de trabalho além das horas de sono?

A que hora e onde as crianças terão direito de gozar dos seus direitos já discorridos e garantidos pelo seu próprio estatuto? Fazendo um cálculo otimista e desrespeitando a indicação de determinados especialistas temos: 24 horas do dia, menos as 8 horas de trabalho, menos 8 horas de sono, menos 4 horas de deslocamento entre casa e trabalho, restam 4 horas diárias para as crianças disputarem a atenção dos seus pais.

Será mesmo que as crianças são mal-educadas ou estarão elas dando um grito desesperado por atenção e disputa com todas as outras distrações dos adultos nessas míseras 4 horas diárias? Serão mesmo os pais os culpados pela má educação dos seus filhos ou estarão eles também imersos em um sistema que suga qualquer possibilidade de um convívio sadio com os mais próximos?

Será que conseguiremos um dia abrir espaços para as crianças na nossa sociedade? Será que um dia conseguiremos superar os nossos próprios traumas e a crueldade do que foi feito conosco e desconstruiremos essas barreiras para verdadeiramente iniciar a mudança que queremos ver no mundo?

Somos seres egoístas, mas vamos tirar as máscaras da vida adulta, vamos nos despir das camadas de conceitos que adquirimos com o passar dos anos e vamos dar as mãos para a nossa criança interior. Seria muita subversão dizer que já fomos crianças e que as melhores pessoas são aquelas que mantém essa essência?

Que possamos aprender com as crianças, e que possamos dar as mãos para brincar de roda. Não façamos as crianças sofrerem as consequências da violência sofrida pelas mulheres. Vamos criar espaços de falas para todos, e lembremos que às vezes a fala das crianças tem um tom um pouco mais alto do que o tom de voz do adulto. Esse grito não é ruim, ele é divertido e geralmente vem acompanhado de sorrisos, risadas e gargalhadas inocentes repletas de anos de vida pela frente.

Que um mundo mais lúdico, brincado e com tom de voz exagerado seja possível para todos.

* Relatório 2015 – Níveis e Tendências em Mortalidade Infantil

Foto: Carol Bernal/Flickr

 

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